Evangélica, a primeira-dama Michelle teve sua fé premiada em Nova York. Em meio à pandemia mais letal do século, se Deus tivesse que aparecer para a mulher de um presidente como Bolsonaro, Ele não se atreveria a surgir em outra forma que não fosse a de uma vacina de dose única contra a Covid.
Sob Bolsonaro, o absurdo adquiriu uma doce naturalidade. A reiteração da irracionalidade suprimiu o espanto dos hábitos nacionais. Se o presidente resolvesse andar de quatro, relinchando contra as vacinas, nada aconteceria. O inaceitável continuaria despachando no Planalto até o último dia do mandato.
De repente, a imunização de Michelle Bolsonaro ressuscitou o ponto de exclamação. Um frêmito de indignação percorre a conjuntura desde que o capitão revelou que sua mulher voltou dos Estados Unidos vacinada. Políticos chamam madame de impatriótica. Epidemiologistas a acusam de trair o SUS.
Bolsonaro derramou mentiras sobre o púlpito das Nações Unidas. E Augusto Aras reassumiu a chefia do Ministério Público com um discurso em que proclamou que a caneta do procurador-geral não será utilizada como instrumento para criminalizar a política. Nenhuma autoridade fez a concessão de uma surpresa.
Bolsonaro converteu o Brasil numa anedótica republiqueta de bananas ao prescrever na principal tribuna da diplomacia mundial o tratamento precoce com o seu kit cloroquina. E Arthur Lira, o réu que preside a Câmara, manteve trancado o gavetão em que se acumulam 132 pedidos de impeachment. O país boceja.
Nesse ambiente marcado pela pasmaceira contemplativa, a pancadaria que atinge Michelle desafia a lógica. Deus fez as vacinas. E logo o diabo inventou o negacionismo. Num cenário convencional, Bolsonaro reencarnaria Oswaldo Cruz, explicando aos súditos a necessidade da vacina. Acontece o oposto.
Há cinco meses, quando ainda chefiava a Casa Civil, o general Luiz Eduardo Ramos disse que tomou "escondido" do chefe a vacina contra Covid. A admissão soou numa reunião do Conselho de Saúde Suplementar. O general não sabia que o encontro estava sendo gravado e transmitido pelas redes sociais.
"Tomei, foi em Brasília, ali no Shopping Iguatemi", disse Ramos. "Tomei escondido porque a orientação era para todo mundo ir para casa, mas vazou. Tomei mesmo, não tenho vergonha não. Eu tomei e vou ser sincero porque eu, como qualquer ser humano, eu quero viver. Eu tenho dois netos maravilhosos, eu tenho uma mulher linda, eu tenho sonhos ainda. Então, eu quero viver, pô. E se a ciência, a medicina, fala que é a vacina, quem sou eu para me contrapor?".
Na mesma reunião, o ministro Paulo Guedes deu asas à perversão ao afirmar que os chineses "inventaram" o coronavírus. Embora tivesse tomado duas doses de CoronaVac, o Posto Ipiranga declarou que a vacina importada da China pelo Butantan é "menos efetiva" do que a norte-americana Pfizer.
Ao saber que estava sendo filmado, Guedes apavorou-se: "Não mandem para o ar". O Ministério da Saúde retirou o vídeo da internet. Mas era tarde. A pantomima ganhou as manchetes. Hoje, a covardia do general e a submissão do PhD de Chicago dão uma ideia da pressão a que estava submetida Michelle.
Na live da última quinta-feira, transmitida ao vivo pelas redes sociais, Bolsonaro contou: "Olha o que aconteceu com a minha esposa. Me perguntou se tomo ou não a vacina. Veio conversar comigo. Sabe como é que é esposa, sabe como é. Tomo ou não? Dei minha opinião."
A "opinião" de Bolsonaro é conhecida. Ao se encontrar em Nova York com o premiê britânico Boris Johnson, ele reiterou, entre risos, que não se vacinou. Absteve-se, porém, de revelar aos devotos da live da noite de quinta-feira o teor do conselho que deu a Michelle. "Vou dizer o que ela fez: tomou a vacina. É maior de idade, tem 39 anos. Tomou a vacina."
Michelle poderia ter rendido homenagens à ciência há dois meses, vacinando-se em Brasília. O problema é que talvez tivesse que imitar o general Ramos, agindo às escondidas para não aguçar os maus bofes de Bolsonaro. Mas na República do capitão irascível a covardia é monopólio da farda.
Em resposta à chuva de críticas, o Planalto informou em nota que Michelle recebeu o sinal divino no instante em que se submeteu ao teste obrigatório de PCR, antes do embarque da comitiva presidencial, em Nova York.
Diz o texto: "Durante a realização da testagem, a primeira-dama foi indagada pelo médico se ela gostaria de aproveitar a oportunidade para ser vacinada. Como já pensava em receber o imunizante, resolveu aceitar."
Deus, como se sabe, é brasileiro. Mas Ele está em toda parte. E decidiu soar para Michelle em língua inglesa: "Yes, madam, how can I help you?" A mulher de Bolsonaro não hesitou: "Uma vacina, pelo amor de Deus!"
A visita de Bolsonaro a Nova York foi marcada pelo vexame. O presidente e seus acompanhantes tiveram de comer na calçada a pizza que o Tinhoso amassou.
Infectado pelo coronavírus e pelo bolsovírus, Marcelo Queiroga despiu o jaleco ao exibir o dedo médio em riste para um grupo de manifestantes.
O chanceler Carlos Alberto França teve um surto de Ernesto Araújo ao ser filmado reproduzindo o gesto da arminha.
De volta ao Brasil, ao testar positivo para Covid, o Zero Três Eduardo Bolsonaro, terceiro membro da comitiva alcançado pelo coronavírus, informou que está engolindo cloroquina.
Num caldeirão de horrores em que a mentira, a ignorância e a infecção se misturaram a dedos insensatos, o braço oferecido por Michelle à agulha norte-americana é um traço civilizatório.
Ficou entendido que a aversão de Bolsonaro à ciência não é levada a sério nem pela primeira-dama. Deus não mereceria existir se Michelle recusasse a vacina em Nova York
Por Josias de Souza
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