Neste domingo, 26 de setembro, que marcou os mil dias de governo Bolsonaro, o país ficou sabendo que Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal — banco estatal colonizado pelo bolsonarismo —, também está com covid-19. Da turma que foi a Nova York, há quatro doentes. Poderia ser apenas algo a lamentar. Muita gente se contamina mesmo tomando as devidas precauções. O vírus não admite distrações, e todos estamos sujeitos a elas. Mais: há situações que não escolhemos. Em suma: é raro que o próprio doente seja o responsável por sua doença. Mas há, sim, as responsabilidades moral e ética quando os infectados pertencem a um grupo militante que faz pouco caso da vacina e das medidas de prevenção. E, nesse caso, respondem por coisa muito mais grave do que contrair o vírus: contribuem para disseminá-lo de maneira determinada e consciente. Essa viagem de Bolsonaro e comitiva a Nova York é, então, a melhor síntese dos tais "Mil Dias de Governo".
É claro que o número é só um pretexto para um balanço. Ao governo, servirá para dar início à campanha eleitoral. Por que "Mil"? Imagina-se que, a partir do 1001º dia, uma nova jornada se inicia? Por que esta não poderia ter começado do 735º?
Já estão em curso os levantamentos por aí, não é? Reforma da Previdência; trajetória da dívida pública; a taxa de juros; o comportamento da inflação; geração de empregos; investimento privado nacional e estrangeiro... Tudo isso tem de ser revisitado. São dados importantes para avaliar a eficácia, ou não, de políticas públicas. A pandemia fez, sim, sombra a todos esses números. Vivemos dias inéditos, e o governo, igualmente, contou com instrumentos nunca dantes vistos para responder a esses desafios. E, então, é preciso ver se reagiu à altura das facilidades que lhe franquearam o Congresso e o Judiciário. A resposta, obviamente, é negativa.
Por mais que os levantamentos, digamos, administrativistas sejam importantes e devam ser feitos, não podemos correr o risco de normalizar essa gestão. O governo poderia ser absurdamente incompetente — e também é, como é sabido —, mas cabe indagar: por que é também golpista e negacionista?
AS MARCAS: O GOLPISMO
Há as marcas principais da gestão de Bolsonaro que não podem ser diluídas nem mesmo no mais negativo dos balanços que se possa fazer de sua gestão. Esse período tem de se transformar numa experiência a ser esconjurada, transformada em anátema. Temos de salgar e de esterilizar esse território, para que flores do mal jamais voltem a brotar. O governo não entrega bons resultados, mas essa ruindade não pode transformar o "Mito" apenas num gestor incompetente e trapalhão.
Já lembrei aqui e o faço de novo. Bolsonaro nunca precisou de conflito entre Poderes — na verdade, essa é uma ficção inventada pelo próprio Planalto — para estimular a pregação do golpe. A primeira manifestação de rua pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo data de 26 de maio de 2019. Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, era peça central na reforma da Previdência e se tinha se tornado já um dos principais alvos dos fascistoides.
A máquina de difamação que atingiu o Supremo, em associação ainda com o lavajatismo, levou Dias Toffoli a, corretamente, abrir o Inquérito 4.781, o das "fake news" — que segurou os golpistas pelo rabo e pelo chifre — no dia 14 de março daquele ano. Gostam de números inteiros? Não se contavam ainda nem 100 dias de governo.
Publiquei uma coluna na Folha no dia 29 de março de 2019 — antes de se completarem os 90 dias de mandato. Evidenciei que, por intermédio de quatro atos, Bolsonaro já havia cometido cinco crimes de responsabilidade — todos eles ligados à agressão às instituições. Era evidente que não iria parar. A íntegra do texto está aqui.
A propósito, escrevi então:
"Há um desânimo evidente em setores da elite que apostaram literalmente num milagre, que é o acontecimento sem causa. Por que diabos, afinal de contas, ele faria um bom governo ou encaminharia soluções institucionais? Em que momento de sua trajetória política ele se mostrou reverente à lei e à ordem? Nem quando era militar, ora bolas!"
AS MARCAS: O NEGACIONISMO
Se os outros Poderes não criavam nenhuma dificuldade especial para Bolsonaro -- e seu golpismo, pois, tinha raiz no delírio autoritário --, como explicar a sandice negacionista? O fenômeno, é verdade, não está restrito ao Brasil. Mas o presidente lhe conferiu a dimensão de política de Estado.
O Brasil é o único país do mundo que adotou o tal "Kit anti-Covid" como resposta oficial à doença, ao arrepio das evidências científicas. Se, nos primeiros dias da pandemia, era correto afirmar que, com certeza, não havia provas da eficácia das tais drogas, não tardou para que se pudesse afirmar que, com certeza, elas eram inócuas contra o vírus. Bolsonaro não recuou e dobrou a aposta.
Não se contentou com isso: também atacou e sabotou o distanciamento social, combateu o uso de máscaras e fez pregação antivacina. Coroou essa trajetória com o discurso abjeto na ONU. Entre os quatro contaminados de sua comitiva, está Marcelo Queiroga, o patético ministro da Saúde.
Como é quem é, Bolsonaro gravou um vídeo, em conversas com extremistas de direita da Alemanha, em que afirma que os que morreram de Covid-19 apenas tiveram a morte antecipada em alguns dias ou semanas: iriam morrer de qualquer jeito.
CONCLUO
Eu sei que parece estranho dizer as coisas deste modo, mas é necessário: não podemos correr o risco de permitir que a incompetência de Bolsonaro minimize seus crimes.
Por Reinaldo Azevedo
Nenhum comentário:
Postar um comentário