quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Prescrição dos crimes de Lula enxaguou um prontuário que o Supremo lavou



Lula gosta de dizer que a Justiça lhe devolveu a inocência. Ao reconhecer a prescrição dos crimes atribuídos ao presidenciável do PT no caso do tríplex do Guarujá, a Procuradoria da República no Distrito Federal esclareceu que não é bem assim. Quando anulou as sentenças que a Lava Jato impôs a Lula, o Supremo Tribunal Federal não emitiu uma sentença absolutória. Apenas declarou, com seis anos de atraso, que os processos contra o líder máximo do PT não deveriam ter sido julgados em Curitiba, porque envolviam uma roubalheira que não se limitava à Petrobras.

O Supremo lavou o prontuário de Lula sob o argumento de as culpas atribuídas a ele —corrupção passiva e lavagem de dinheiro— precisariam ser submetidas a um novo julgamento, dessa vez na Justiça Federal de Brasília. Estava escrito nos astros que viria a prescrição. Ao enxaguar a ficha do agora candidato a um terceiro mandato no Planalto, a Procuradoria foi caprichosa. Esclareceu que o cálculo do tempo de prescrição foi feito com base nas penas impostas pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, o STJ.

Foi como se a Procuradoria quisesse realçar que a sentença que levou Lula a passar uma temporada na cadeia foi julgada em três instâncias do Judiciário. Sergio Moro, então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, condenou o acusado a 9 anos e 6 meses de cadeia. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre, elevou a pena para 12 anos e um mês. Acionado pela defesa de Lula, o STJ reduziu a sanção a 8 anos, 10 meses e 20 dias. Com 76 anos, Lula foi socorrido pela idade, pois o prazo de prescrição cai pela metade no caso dos septuagenários.

Ao celebrar a confirmação de uma prescrição que todos esperavam, a defesa de Lula sustentou que o arquivamento põe fim a um caso "construído artificialmente a partir do conluio do ex-juiz Sergio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol". Os diálogos revelados pela Vaza Jato não dignificam Moro e Dallagnol. Mas a reforma do tríplex não brotou dos diálogos capturadas nos celulares dos procuradores.

Um fenômeno curioso perseguiu Lula e a ex-primeira-dama Marisa. Bastava que eles se interessassem por certos imóveis para que a OAS e a Odebrecht —ou as duas— providenciassem os confortos.

Na origem da encrenca, quando ainda não precisava de advogados, Lula admitiu, por meio de sua assessoria, que era o dono do tríplex do Guarujá. Deu-se em dezembro de 2014. Em notícia veiculada no dia 7 daquele mês, o repórter Germano Oliveira informou: a Bancoop, Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo, que deixara cerca de 3 mil pessoas na mão por causa de fraudes atribuídas ao seu ex-presidente, o petista João Vaccari Neto, entregara a Lula o tríplex do Guarujá. Com a falência da cooperativa, a OAS assumira as obras.

O edifício ficara pronto em dezembro de 2013. Mas o apartamento de Lula recebera um trato especial. Coisa fina. Antes unidos apenas por uma escada interna, os três andares foram atravessados por um elevador privativo. O piso ganhou revestimento de porcelanato. E a cobertura foi equipada com uma sauna e um 'espaço gourmet', ao lado da piscina.

Ouvida nessa época, a assessoria de Lula declarou: "O ex-presidente informou que o imóvel, adquirido ainda na planta, e pago em prestações ao longo de anos, consta na sua declaração pública de bens como candidato em 2006." Postulante à reeleição naquele ano, o então presidente Lula de fato havia informado à Justiça Eleitoral que repassara à Bancoop R$ 47.695,38, uma cifra que não ornava com o valor de um tríplex.

De repente, a assessoria de Lula ajustou a versão sobre a posse do tríplex. Cinco dias depois de reconhecer a posse do imóvel, sob os efeitos da repercussão negativa da notícia, o Instituto Lula divulgou, em 12 de dezembro de 2014, uma "nota sobre o suposto apartamento de Lula no Guarujá."

Primeiro, o texto cuidou de retirar a encrenca dos ombros de Lula. Anotou que foi a mulher dele, Marisa Letícia, quem "adquiriu, em 2005, uma cota de participação da Bancoop, quitada em 2010, referente a um apartamento." A previsão de entrega era 2007. Em 2009, com as obras ainda inacabadas, os cooperados "decidiram transferir a conclusão do empreendimento à OAS."

O prédio ficou pronto em 2013. Os cooperados puderam optar entre pedir o dinheiro de volta ou escolher um apartamento. "À época, dona Marisa não optou por nenhuma destas alternativas", escreveu o Instituto Lula. "Como este processo está sendo finalizado, ela agora avalia se optará pelo ressarcimento do montante pago ou pela aquisição de algum apartamento, caso ainda haja unidades disponíveis." Nessa versão, a família Lula da Silva estava em cima do muro.

Em 17 de dezembro de 2014, cinco dias depois da nota em que o Instituto Lula alegara que Marisa Letícia ainda hesitava entre requerer o dinheiro investido na Bancoop ou escolher um apartamento no edifício Solaris, moradores do prédio informaram ao repórter Germano Oliveira que a mulher de Lula apanhara as chaves do tríplex número 164 A havia mais de seis meses, em 5 de junho. "Todos pegamos as chaves no dia 5 de junho, inclusive dona Marisa", disse, por exemplo, Lenir de Almeida Marques, mulher de Heitor Gushiken, primo do amigo de Lula e ex-ministro Luiz Gushiken, morto em 2013.

Só em 8 de novembro de 2015 viria à luz a notícia sobre a decisão da mulher de Lula acerca do apartamento do edifício Solaris. Nessa data, o repórter Flávio Ferreira informou que Marisa desistira do tríplex. Os assessores de Lula esclareceram que ela acionaria seus advogados para reivindicar a devolução do dinheiro que aplicara no empreendimento. Considerando-se que a OAS assumira as obras do edifício Solaris em 2009, a ex-primeira dama levou arrastados seis anos para decidir. Cooperados menos ilustres tiveram de decidir na lata, sob pena de perder o direito de exercer a opção de compra.

Inquérito conduzido pelo Ministério Público de São Paulo, sem vinculação com a Lava Jato, revelou indícios de que o tríplex do Guarujá integrava o patrimônio oculto do casal Lula e Marisa. Eles seriam os proprietários escondidos atrás da logomarca da OAS. Ouviram-se no inquérito uma dezena de testemunhas. Chama-se Armando Dagre Magri uma das testemunhas. É dono da Talento Construtora. Contou à Promotoria que a OAS contratou sua empresa para reformar o tríplex número 164 A.

Armando Magri orçou a obra em R$ 777 mil. Realizou o serviço entre abril e setembro de 2014. Não esteve com Lula. Mas avistou-se com Marisa. Estava reunido no apartamento com um representante da OAS quando, subitamente, a mulher de Lula deu as caras. Estava acompanhada de três pessoas. Descobriria depois que eram o filho Fábio Luís, o Lulinha, um engenheiro da OAS e ninguém menos que o dono da empreiteira, Léo Pinheiro, condenado posteriormente a 16 anos de cadeia na Lava Jato. Inspecionaram a reforma, atestaram sua conclusão e deram a obra por encerrada.

Zelador do prédio na ocasião, José Afonso Pinheiro relatou ao Ministério Público de São Paulo que Lula também inspecionou as obras do tríplex. Esteve no apartamento, por exemplo, no dia da instalação do elevador privativo. Contou que a OAS limpava o prédio. Ornamentando-o com flores nos dias de visita de Marisa. Uma porteira do edifício disse à Promotoria ter visto Lula e Marisa juntos no local em fins de 2013.

Tudo isso se passou antes que Sergio Moro se debruçasse sobre o processo. Ao caso do tríplex somou-se o processo sobre o sítio de Atibaia. Alegou-se que Marisa Letícia interessou-se pelo apartamento, mas desistiu. A certa altura, informou-se que Lula cogitou comprar o sítio. Mas também voltou atrás. Assim como sucedera no tríplex, também no sítio as melhorias sugiram do nada. Sem que ninguém solicitasse, duas das maiores empreiteiras do país se juntaram para providenciar uma cozinha nova, reformar a sede da propriedade, construir anexos, ampliar o lago, ornamentá-lo com pedalinhos.

Nesse tipo de enredo, os brasileiros são divididos em duas categorias: há os cínicos, que conseguem usufruir graciosamente de propriedades alheias. E há os azarados, que não dispõem de amigos tão generosos. Do ponto de vista processual, num país em que quatro em cada dez presos pobres e pretos estão atrás das grades sem sentença, a prescrição de crimes confirmados em três instâncias rima com impunidade, não com inocência.

Por Josias de Souza

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