quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

O bolsonarismo, a seu modo, é internacional. Ou: Ideologia e ódio à ciência


Livro fundamental de J. Chasin sobre o integralismo e Plínio Salgado: ele queria a revolução
espíritual num ambiente de regressismo rural...

Parece a todos absurdo que a mais nova frente de batalha de Jair Bolsonaro se traduza no ataque à vacinação de crianças? Pois é. Ele não está sozinho. É o primeiro político brasileiro relevante que está conectado a uma direita internacionalista — no caso, extrema direita —, ainda que seja notavelmente ignorante, podendo-se inferir, sem receio de errar, que jamais leu um livro inteiro.

É certo que políticos reacionários no Brasil se inspiraram em congêneres americanos ou europeus ou mantiveram contato, no passado, com nazistas e fascistas, muito especialmente durante o Estado Novo. Getúlio Vargas flertou abertamente com o Eixo e mantinha no governo admiradores de Hitler e Mussolini.

O golpe de 1964, já está amplamente demonstrado, foi obra de nativos, mas em coordenação com o governo americano, no contexto da Guerra Fria. As Forças Armadas brasileiras, ainda hoje, têm um pé fincado no anticomunismo de anteontem, herança do combate às "ideologias exóticas". É evidente que tal combate atendia e atende a interesses bastante corriqueiros e ordinários.

Nenhum extremista de direita é uma ilha. E assim é no Brasil. Por aqui, no entanto, a militância reacionária relevante sempre teve um forte sotaque localista, desconectado de movimentos de massa mundo afora. Dá-se, por exemplo, de barato, a despeito das evidências, que o Integralismo foi a mera expressão nativa do fascismo ou do nazismo.

Há que se ler um livro que nunca mereceu a devida apreciação no país: "O Integralismo de Plínio Salgado", de J. Chasin, que tem um subtítulo eloquente: "Forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio". Trata-se, como se nota, de uma interpretação marxista do fascismo e do integralismo, mas esse não é o aspecto que me interessa agora.

Chasin evidencia que o integralismo adotou a coreografia do fascismo, mas seus horizontes eram, a um só tempo, mais modestos e mais ambiciosos do que os modelos totalitários europeus. O nazifascismo era uma máquina de guerra do capitalismo tardio, segundo marxistas, e seu apelo aos valores do patriotismo e do nacionalismo eram instrumentos de mobilização ideológica. Plínio Salgado, por seu turno, idealizou uma utopia ruralista para frear o mundo moderno e industrial.

Também sob esse ângulo é possível entender por que o integralismo se torna uma peça que não encontra lugar no quebra-cabeças dos Estado Novo getulista. Além dessa utopia regressiva, o pai do integralismo também pregava uma revolução espiritual rumo ao que chamava "Quarta Humanidade", fundada num catolicismo das catacumbas. O nazifascismo compreendia a guerra generalizada para subjugar países, e a Igreja Católica, por óbvio, não teria lugar naquela ordem que se buscava. Salgado queria reformar o homem desde a origem para que voltasse ao Éden perdido. Hitler e Mussolini ririam da sua cara. Apesar da concepção e da coreografia também totalitárias.

Se o integralismo foi o mais estruturado dos movimentos de extrema direita havidos no Brasil, ainda assim se admita que tinha particularismos que não o subordinavam a uma agenda internacional. No que e quando atrapalhou os planos de Getúlio, foi tratado debaixo de cacete. E agora retomo o começo dessa prosa.

INTERNACIONALISMO E MOVIMENTO ANTICIÊNCIA
Os bolsonaristas não estão sozinhos em sua pregação antivacina. Esse é hoje um dos pilares da extrema direita em todas as democracias. Nas ditaduras, por óbvio, essa gente não se cria. Não porque estas exerçam a tirania em nome da ciência, mas porque não precisam hesitar em reprimir a estupidez que ameaça a saúde coletiva. Se os indivíduos, no geral, são privados até dos direitos fundamentais e da liberdade de expressão, não seria para negar a existência do vírus ou a eficácia das vacinas que se iria assegurar o espaço da divergência.

Temos, sim, pela primeira vez, uma extrema direita efetivamente internacionalista, com a diferença — e desconheço outro caso — de que o negacionista, no nosso caso, está no poder. Governos, mundo afora, entram em confronto com movimentos que se colocam contra a vacina; aqui, o discurso anticientífico é exercitado por milícias governistas, com o apoio do presidente.

E como explicar que o Brasil esteja entre os países que mais vacinaram no mundo? Há uma herança em favor da vacinação e uma rede de Saúde — o SUS — que, a despeito dos problemas, tem capilaridade. E há por aqui muito mais pobres do que na Europa ou dos EUA. "Como assim, Reinaldo?" O quadro de pobreza e miséria não permite que a nossa população, na sua maioria, tenha medo do que não existe. Já basta temer o que existe. Ou ainda: as carências eliminam o privilégio de ter medo.

NÃO DEIXA DE SER CURIOSO
Afirmei que Salgado era, a um só tempo, mais modesto e mais ambicioso do que o nazifascismo. Num caso, queria a sua bisonha utopia ruralista; no outro, a "revolução espiritual". Que, ora vejam!, era anticientífica! Ouçam o que Olavo de Carvalho afirma sobre a ciência -- o que também vaza nas palavras desconexas de Bolsonaro -- e se estará a ouvir a voz do idealizador do integralismo.

Em "Palavra Nova nos Tempos Novos", Salgado escreve que "a ciência é orgulho estúpido do homem". Ou, ainda, em "A Quarta Humanidade":
"[O homem precisa] de amor à verdade, que vale mais do que a ciência, porque a ciência da verdade é, por assim dizer, o desapego à verdade da ciência. Tudo o que nos tolher essa liberdade será o preso inútil de um passado, preconceitos de uma cultura dos séculos mortos".

Parece pouco? Ainda em "A Quarta Humanidade":
"Houve sempre uma Judeia de profetas e outra de doutores. Os profetas levam à vida, e os doutores à morte. Os doutores são a peste dos povos, a ausência do espírito criador, suprida pela controvérsia e pelo sofisma".

Tudo parece muito familiar, não é? No momento em que a extrema direita brasileira se conecta com as suas congêneres além-fronteiras, assiste-se a manifestações muito próximas daquele aspecto estupidamente "ambicioso" de Plínio Salgado. A "utopia ruralista" com a qual ele sonhava ficou para trás e se mostrou uma tolice já a seu tempo. Mas se nota que o delírio regressivo da tal "revolução espiritual" é mesmo atemporal. Como os reacionários.

Por Reinaldo Azevedo

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