A portaria de Onix Lorenzoni, ministro do Trabalho, proibindo a demissão de não vacinados ou a exigência de atestado de vacina para a contratação fere coisa julgada pelo Supremo. O tribunal já decidiu que a obrigatoriedade da vacina é constitucional. O que o STF rejeitou — e nunca ninguém propôs algo parecido — é a imunização na marra.
É claro que o ministro não tomaria essa decisão sem a concordância de Jair Bolsonaro, aquele cara que faz turismo da truculência na Itália. As milícias bolsonarianas exigem um novo confronto com o Supremo. Já afirmei aqui que a resistência à vacina é hoje uma das bandeiras da extrema direita mundo afora. Inexiste relação de subordinação entre os vários grupos, mas a agenda é a mesma. É o que chamo "Al Qaeda Eletrônica do Neofascismo".
Não deixa de ser comovente constatar que o ministro considera a prática "discriminatória". Sempre que o bolsonarismo acusar "discriminação", é bom tomar cuidado. Ora vejam... Essa gente não tem receio nenhum em confundir homofobia, misoginia ou racismo com "liberdade de expressão", certo? Para eles, nesse caso, acusar a "discriminação" corresponde a fazer "mimimi".
Os valentes defendem o suposto "direito" — talvez considerem até um "direito natural" — que seus iguais teriam, ainda que "apenas" por intermédio de palavras, de discriminar o outro simplesmente porque esse outro é quem é: afinal, não se escolhe ser mulher, gay ou negro. E acrescento: também no universo das escolhas, o exercício do querer alheio que não interfira na liberdade de terceiros não é da conta de ninguém. Muito menos desses arautos da intolerância.
Transcrevo a síntese do acórdão do julgamento do STF sobre a vacinação obrigatória:
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Luiz Fux, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por maioria, julgar parcialmente procedente a ação direta, para conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 3º, III, d, da Lei 13.979/2020, nos termos do voto do Relator e da seguinte tese de julgamento:
(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e
(i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes,
(ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes,
(iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas,
(iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e
(v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; e
(II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência". Vencido, em parte, o Ministro Nunes Marques.
Como vocês podem ler acima, o tribunal fez uma interpretação "conforme a Constituição" de uma lei, a 13.979, que prevê a obrigatoriedade da vacina. E cita explicitamente o Artigo 3º, que é exaustivo sobre as ações que o Estado pode empreender para enfrentar a pandemia. Transcrevo trecho:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)
I - isolamento;
II - quarentena;
III - determinação de realização compulsória de:
a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;
III-A - uso obrigatório de máscaras de proteção individual; (Incluído pela Lei nº 14.019, de 2020)
IV - estudo ou investigação epidemiológica;
V - exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;
VI - restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)
a) entrada e saída do País; e (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)
b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)
VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa;
(...)
RETOMO
Ora, o empregador público ou privado que exigir o atestado de vacina estará atuando nos estritos termos na lei, com a devida interpretação que lhe conferiu o Supremo. Todos já sabemos, e os números estão aí para confirmá-lo, a "eficácia e segurança da vacina". O direito fundamental a ser preservado é o direito à vida. No ponto em que o livre arbítrio agride o interesse coletivo, prevalece, por óbvio, o interesse coletivo.
As democracias não conferem a ninguém o direito de pôr a vida de terceiros em risco. Todos hão de ter a liberdade máxima para decidir sobre o seu próprio destino, inclusive nas questões de saúde. Mas não podem decidir sobre a vida alheia.
Os pais que não vacinam seus filhos podem sofrer a sanção do Estado. E assim tem de ser.
A portaria de Onyx não preserva direitos individuais. Ela põe em risco a saúde coletiva — e, por consequência, a de cada indivíduo que compõe essa coletividade.
Por Reinaldo Azevedo
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