terça-feira, 9 de novembro de 2021

Orçamento secreto: Governo já perdeu; resta saber agora tamanho da derrota



No começo da madrugada desta terça, três ministros já haviam se manifestado no sistema eletrônico do Supremo sobre a liminar da ministra Rosa Weber, que suspendeu a execução das emendas do relator e determinou a divulgação de todos os desembolsos a esse título referentes a 2020 e 2021. Lá estão os respectivos votos da própria Rosa — que, claro!, referendou a decisão que tomara na sexta — e também dos ministros Roberto Barroso e Cármen Lúcia, que seguiram integralmente a relatora.

Transcrevo a decisão de Rosa:
"(a) quanto ao orçamento dos exercícios de 2020 e de 2021, que seja dada ampla publicidade, em plataforma centralizada de acesso público, aos documentos encaminhados aos órgãos e entidades federais que embasaram as demandas e/ou resultaram na distribuição de recursos das emendas de relator-geral (RP-9), no prazo de 30 (trinta) dias corridos;

(b) quanto à execução das despesas indicadas pelo classificador RP-9 (despesas decorrentes de emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual), que sejam adotadas as providências necessárias para que todas as demandas de parlamentares voltadas à distribuição de emendas de relator-geral, independentemente da modalidade de aplicação, sejam registradas em plataforma eletrônica centralizada mantida pelo órgão central do Sistema de Planejamento e Orçamento Federal previsto nos Arts. 3º e 4º da Lei 10.180/2001, à qual assegurado amplo acesso público, com medidas de fomento à transparência ativa, assim como sejam garantidas a comparabilidade e a rastreabilidade dos dados referentes às solicitações/pedidos de distribuição de emendas e sua respectiva execução, em conformidade com os princípios da publicidade e transparência previstos nos Arts. 37, Caput, e 163-A da Constituição Federal, com o Art. 3º da Lei 12.527/2011 e Art. 48 da Lei Complementar 101/2000, também no prazo de trinta dias corridos; e

(c) quanto ao Orçamento do exercício de 2021, que seja suspensa integral e imediatamente a execução dos recursos orçamentários oriundos do identificador de resultado primário nº 9 (RP 9), até final julgamento de mérito desta arguição de descumprimento."

Os outros sete ministros têm até as 23h59 desta quarta para se manifestar. A largada não é nada auspiciosa para os defensores do chamado "Orçamento Secreto". E, se querem saber, uma coisa se pode dar como certa: secreto ele não será mais. Aposto que ao menos nove ministros — incluindo a própria Rosa — vão cerrar fileiras com os itens "a" e "b". A quetão é o que fazer com o item "c".

Releiam ali. A execução dos recursos orçamentários oriundos das chamadas "emendas do relator" (RP 9) está suspensa, afirma Rosa, "até o final julgamento de mérito" da ação. Ainda que todos os seus colegas venham a concordar com esse aspecto da liminar, é claro que os recursos reservados às emendas do relator não serão cassados pelo Supremo. Até porque esse dinheiro pode, efetivamente, se traduzir em benefício para a população.

Como distinguir, de resto, a politicagem do que é, efetivamente, política pública?

Eis a questão: se considero fora de dúvida que o Supremo vai pôr fim ao sigilo da destinação das emendas porque escancaradamente inconstitucional, é preciso ver o que fazer com essa fatia de recursos que entra na rubrica de "emendas do relator".

AGIGANTAMENTO
Rosa lembra em seu voto que o Regimento Interno do Congresso prevê quatro tipos de emenda ao Orçamento:
- emendas de comissão (autoria das comissões permanentes);
- emendas de bancada estadual (autoria das bancadas estaduais no Congresso);
- emendas individuais (autoria dos Congressista em exercício);
- emendas de relator (autoria do relator-geral do projeto de lei orçamentária anual)

Assim, as "emendas do relator" sempre existiram, mas, como lembra Rosa, seu propósito era "conferir ao relator-geral do projeto de lei orçamentária os poderes necessários à organização do conjunto de modificações introduzidas na proposta legislativa inicial." Ela vai adiante: "Essa modalidade de emenda parlamentar tinha por objeto apenas a correção de erros e omissões de ordem técnica ou legal e a organização sistemática das despesas conforme suas finalidades".

Uma resolução de 2006 do Congresso ampliou enormemente o escopo da atuação do relator, conferindo-lhe amplos poderes quanto ao conteúdo e finalidade das emendas. O rol é exaustivo. Pode-se dizer que pode atuar na área que lhe der na telha.

Até 2019, no entanto, houve, vamos dizer, uma autocontenção no uso dessas emendas. Nesse ano, lembra a ministra, a Lei 13.898 (LDO) passa a contar com um "código de classificação orçamentária", o "RP 9", que designa justamente as emendas do relator. Destaca a ministra que esse código tem o poder de "segregar" as emendas que têm caráter corretivo daquelas que dizem respeito a "ações e serviços" — vale dizer: que implicam desembolso de recursos.

Rosa apela a um estudo do TCU e transcreve:
"Nota-se que, entre 2017 e 2019, a quantidade de emendas de relator-geral manteve a média de 3,0% em relação ao total de emendas apresentadas, em cada exercício, por tipo de autoria. Em 2020, foram apresentadas 1.621 emendas de relator-geral, quantitativo que representou 15,5% do total de emendas e superou, em 523%, as emendas desse tipo apresentadas no exercício anterior".

E Rosa transcreve a síntese do estudo do TCU sobre as emendas do relator:
(a) aumento expressivo na quantidade de emendas apresentadas pelo relator do orçamento (aumento de 523% ) e no valor das dotações consignadas (aumento de 379% );
(b) inobservância de quaisquer parâmetros de equidade ou eficiência na eleição dos órgãos e entidades beneficiários dos recursos alocados;
(c) inexistência de critérios objetivos, orientados pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, art. 37, caput ), aptos a orientar a destinação dos recursos identificados pelo classificador RP 9;
(d) comprometimento do regime de transparência ante a ausência de instrumentos de accountability sobre as emendas do relator; e
(e) ausência de sistema centralizado e metodologia uniforme para a disponibilização das informações e dados contábeis e orçamentários, de forma a garantir a rastreabilidade, a comparabilidade e a publicidade dos dados pertinentes à execução das emendas do relator, nos termos exigidos pela Constituição (art. 163-A, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 108/2020).

CHEGA-SE AO NÓ
O Supremo, obviamente, não vai poder manter suspensa para sempre a execução de emendas do relator. Também não está em julgamento uma ação para declarar a sua inconstitucionalidade. Afinal, o instrumento está previsto no Regimento Interno do Congresso e em lei.

O busílis é que se aplicou um truque para chamar "emendas do relator" aquilo que se decidir chamar "emendas do relator"... Ao determinar a divulgação de todos os dados — e tanto Arthur Lira, presidente da Câmara, como Jair Bolsonaro expressaram a sua contrariedade —, a ministra Rosa já dá um primeiro e duro golpe na patranha em curso. O sigilo desses gastos fere a Constituição de maneira inequívoca.

Ocorre que a manutenção do atual sistema, que confere discricionariedade imperial aos controladores da rubrica "RP 9", também fere, como observou o TCU, "quaisquer parâmetros de equidade ou eficiência na eleição dos órgãos e entidades beneficiários dos recursos alocados". E, por óbvio, tem-se aí uma agressão à Constituição.

Se não for o Congresso a regular a questão, será quem? Insista-se: a transparência não basta.

PROPOSTA REVOLUCIONÁRIA
Faço aqui uma proposta que eu diria "revolucionária" mesmo... Arthur Lira, presidente da Câmara, quer excitar o brio dos parlamentares, insistindo em que o Supremo está se metendo na economia interna do Congresso. A gente sabe como a tecla da "guerra entre os Poderes" andou sendo acionada ultimamente...

Que os recursos restantes das emendas do relator de 2021 sejam transferidos, então, para as "emendas individuais" e de "bancadas". E que se processe a redistribuição referente a 2021. O que lhes parece? Convenham: manter-se-á o percentual de interferência do Congresso na destinação do Orçamento, mas sem a compra institucionalizada de votos parlamentares.

Como já afirmei algumas vezes, nunca houve um sistema tão azeitado de compra e venda de consciências como este em curso. Aquilo a que se chamou "mensalão" virou piada de salão. O Supremo, de fato, não pode entrar na economia interna das emendas. Mas também não pode compactuar com um arranjo que usa dinheiro público para conquistar votos no plenário, escondendo, ademais, a destinação desses recursos.

Como é que se põe o guizo no pescoço desse gato?

Por Reinaldo Azevedo

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