Ao ignorar a exigência legal de fonte de receita para criar uma despesa permanente, governo escancara o desrespeito a pilares macroeconômicos
De todos os absurdos que o governo de Jair Bolsonaro executou nos últimos anos, chama a atenção em particular a desfaçatez com que regras fiscais consagradas foram rasgadas sem qualquer cerimônia. Com a desculpa de abrir espaço no Orçamento para socorrer a população mais carente, o Executivo apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios para acabar com o teto de gastos e institucionalizar o calote nas dívidas já reconhecidas pela Justiça. Não satisfeito, foi além e decidiu ignorar um dos maiores pilares econômicos do País: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Segundo o parecer do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), relator da PEC, o Auxílio Brasil vai se transformar em uma despesa permanente no Orçamento mesmo sem ter uma fonte de receitas para financiá-lo, algo expressamente proibido pela LRF, que exige compensação para aumento de gastos dessa natureza. Com piso de R$ 400, o benefício vai alcançar 50 milhões de pessoas, quase um quarto da população.
Os recursos que vão irrigar essa política no próximo ano virão do sublimite ao pagamento dos precatórios e do drible no teto, cuja regra de cálculo foi modificada na tentativa de angariar votos para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Para 2022, foi aberta uma “folga” de R$ 106,1 bilhões no Orçamento, dos quais R$ 51,1 bilhões serão destinados ao programa, segundo o Ministério da Economia. A partir de 2023, ninguém sabe como essa conta será paga.
A desculpa oficial é que esse problema é temporário, uma vez que o governo conta com a aprovação da reforma do Imposto de Renda (IR) para obter recursos definitivos para o novo programa. O discurso, reverberado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é o de que a tributação sobre lucros e dividendos de pessoas jurídicas será a solução para o imbróglio.
Não é o que pensa o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Embora a reforma do IR tenha sido aprovada na Câmara, as chances de o texto avançar neste ano são, no mínimo, remotas e, no ano que vem, praticamente impossíveis. O relator, senador Angelo Coronel (PSD-BA), disse ao Estado que sua prioridade é atualizar a tabela do Imposto de Renda de pessoas físicas – algo que, por sinal, pode ser feito por decreto.
Assim, depois de acabar com o Bolsa Família, um programa consolidado e elogiado por especialistas, o governo prossegue no caminho de destruição de políticas públicas, agora sem nem mesmo ter fonte de recursos para o benefício social que pretende ser uma bandeira da gestão de Jair Bolsonaro. Para isso, defende mais um drible fiscal e a interpretação segundo a qual uma PEC prevalece sobre uma lei.
O texto sugerido por Bezerra Coelho na PEC estabelece que os limites e condições para atender ao Auxílio Brasil serão determinados por lei até 31 de dezembro de 2022. Esse projeto, por sua vez, não precisará cumprir limitações legais quanto à criação ou aperfeiçoamento de programa que acarrete aumento de gastos. Na prática, portanto, o Auxílio Brasil ficará fora do escopo da Lei de Responsabilidade Fiscal. De acordo com o senador, a intenção é cumprir a LRF no que for “aplicável”. A votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado ficou para o dia 30 de novembro.
No mercado, a manobra não surpreendeu. A dúvida que remanesce é até onde irão as aventuras populistas do governo. O resultado é bolsa em queda, juros elevados e real desvalorizado. Não bastasse o erro, o Congresso ainda trabalha para fixá-lo de forma permanente na Constituição.
Em um governo que se diz liberal na economia, a contribuição direta para o descontrole da inflação e do gasto público deveria ser motivo de vergonha. Além de desancorar as expectativas, a PEC dos Precatórios vai retroalimentar uma espiral perversa que deve transformar as dívidas judiciais da União em uma bola de neve para o próximo presidente. É bom lembrar que Dilma Rousseff foi defenestrada da Presidência por ignorar a responsabilidade fiscal com manobras e truques que parecem amadores perto do que o governo atual pretende fazer.
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