Wilson Witzel (PSC), governador do Rio, quer prender a audiência num falso dilema: ou as pessoas estão com ele e com sua política de segurança pública homicida ou, então, estão com o narcotráfico. E, nesse caso, consegue sacar um argumento que tem, sim, relevância moral para colocá-lo a serviço do infanticídio, que força as portas do bom senso para ganhar o status de fatalidade e dano colateral no combate ao narcotráfico.
Não! Eu e, se me permitem, as pessoas decentes nem estamos com Witzel nem com o narcotráfico. Também não nos alistamos nas fileiras das milícias, senhor governador. Quero aqui tratar do tal argumento de relevância moral que ele julgou, certamente, ter sido a sua grande sacada na entrevista coletiva desta segunda-feira.
Sim, eu acho que os consumidores de drogas ilícitas têm o dever de se perguntar se não estão colaborando para o poder do narcotráfico, que sequestra comunidades inteiras e as expõe a uma rotina de insegurança permanente e episódios de violência crua. Mais: o narcotráfico também alicia crianças e jovens e os torna funcionários de sua aventura a um só tempo suicida e homicida.
Não acho que sejam desprezíveis eventuais contra-argumentos a essa constatação objetiva. O poder do narcotráfico — e, de modo distinto, o das milícias — se dá num ambiente de Estado ausente, de desesperança, de pobreza. Oferecem supostas saídas a quem, em regra — e as exceções a confirmam — não têm nada e sabem que nada terão. Mais: é preciso questionar, embora a resposta óbvia me pareça falaciosa, se a legalização das drogas ilícitas não reduziria a quase nada o poder do narcotráfico, uma vez que sua força está na clandestinidade.
Acho frágeis as duas objeções à responsabilidade moral que, com efeito, acredito que tenham os consumidores de drogas ilícitas no poder do narcotráfico. Sim, cada consumidor poderá pensar: "Eu não consumindo, mudo pouco o rumo das coisas". De fato, se ninguém mais fizer o mesmo, a sua renúncia ao hábito ou vício será irrelevante. Mas a resposta moral não precisa ser nem política nem eficaz. À consciência de cada um basta saber não estar dando sua contribuição pessoal a facínoras que também tiranizam e matam crianças e pobres.
Dado isso, avancemos para as imposturas do governador. Por mais que consumidores de drogas possam ter sua parcela de contribuição no poder literalmente de fogo do narcotráfico, não são eles que escalam helicópteros para sobrevoar favelas e atirar a esmo. Não são eles que organizam verdadeiras expedições punitivas a essas áreas, trocando tiros a céu aberto, enquanto inocentes tentam se safar. Não são eles que instituíram a lei do abate, com ordem para atirar e matar em quem estiver portando fuzil, ainda que em posição passiva, ou o que quer que, à distância, pareça um fuzil.
Quem faz isso é Wilson Witzel. Apelar ao comprometimento moral que cada cidadão deve ter com a segurança não desculpa uma política pública que, na prática, consiste em empilhar corpos de pretos e pobres para provar à sociedade que alguma coisa, afinal de contas, está sendo feita.
Witzel, a exemplo de todo primitivo moral, delata a sua própria estratégia discursiva ao atribuí-la aos outros, aos adversários, aos críticos. Quando diz ser indecente usar um caixão como palanque, e é mesmo, acaba confessando que foi ele próprio, desde o primeiro dia do governo — ou já desde a campanha eleitoral — a escolher esse caminho.
Com a diferença de que o governador não quer usar apenas um caixão, mas centenas, quem sabe milhares, de sorte que a morte é, então, a métrica de sua eficiência. Cadáveres são cabos eleitorais obviamente passivos da política do governador, que hoje parece empenhado em demonstrar que Jair Bolsonaro, cuja cadeira ambiciona, é só um falastrão, que fala demais e faz pouco. Com ele, Witzel, é diferente: realmente entrega o que promete. Os cadáveres estão aí para demonstrar.
Bolsonaro, afinal, não dispõe de uma força armada que possa encarar esse tipo de crime e oferecer a carne e sangue a quem está com fome e com sede de vingança. Pena, não é?, que apareçam algumas crianças no meio, que devem, então, ser encaradas como danos colaterais.
O narcotráfico mata. As milícias matam. Mas a política de segurança pública do senhor governador também mata. Não são, no entanto, crimes eticamente equivalentes porque os dois primeiros grupos são organizações que se estabelecem à margem do Estado para desafiá-lo e combatê-lo. O sr. Witzel encarna o Estado e, portanto, tem a obrigação da legalidade. E esse Estado não pode ser, ele também, criminoso.
É, sim, relevante saber se foi a polícia ou não que matou Ágatha — e cumpre que fiquemos vigilantes para garantir a lisura da investigação. Ainda que não tenha sido; ainda que se venha a provar que o tiro partiu de narcotraficantes, isso não absolverá a política de insegurança pública do governador.
É evidente que ele jamais orientaria a sua polícia a entregar aos canibais com sede e com fome sua ração diária de carne negra e pobre, mas todos sabemos quais serão as vítimas quando helicópteros atiram a esmo contra favelas, quando alvos são estabelecidos à distância, quando se privilegia a lógica do confronto aberto nessas comunidades. As vítimas serão as de sempre. As que já têm muito pouco. E só por isso são reféns daqueles que o governador deveria combater.
É preciso que Witzel pare de consumir as drogas da truculência e do Estado homicida. E todos nós precisamos parar de consumir a omissão entorpecente.
Por Reinaldo Azevedo
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