domingo, 8 de setembro de 2019

Supremo precisa censurar a censura ao beijo gay



Certas decisões judiciais, por obscenas, deveriam circular envoltas em plástico preto. É o caso do mais recente despacho do desembargador Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ele autorizou a apreensão da história em quadrinhos "Vingadores – A Cruzada das Crianças", que traz ilustração de dois homens se beijando. Até que o Supremo Tribunal Federal censure a censura, o acesso ao despacho do doutor deveria ser precedido de um aviso: "Decisão judicial pornográfica, imprópria para crianças de zero a 99 anos."

O desembargador Tavares revogou liminar de um colega do mesmo tribunal, que proibira o prefeito carioca Marcelo Crivella de recolher exemplares da história em quadrinhos na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Para Tavares, o beijo gay viola o ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, a publicação não poderia ser comercializada senão escondida em embalagens lacradas, com advertência sobre o conteúdo.

Não há no ECA vrstígio de menção a beijo entre personagens do mesmo sexo em publicações destinadas ao público infanto-juvenil. O que o estatuto anota é o seguinte: as obras "não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família".

Depreende-se que, a exemplo do prefeito Crivella, o desembargador Tavares entende que o fatídico beijo dos quadrinhos é um atentado contra os valores da família brasileira. O diabo é que, por decisão da Suprema Corte, a união homoafetiva foi formalmente incorporada ao conceito de família no ano da graça de 2011. Quer dizer: o beijo gay tem o mesmo amparo legal do beijo heterossexual. Espanta que um desembargador queira sapatear sobre decisão do Supremo.

No âmbito familiar, o doutor Tavares pode cultivar os valores que bem entender. O que não se admite é que um desembargador faça opção preferencial pelo preconceito. Sob pena de tropeçar em outra decisão do Supremo, tomada neste ano de 2019 —aquela que equiparou a homofobia ao crime de racismo. O presidente do tribunal do Rio sustenta que seu despacho não se confunde com um "ato de censura". Conversa mole. A liberdade de expressão, como bem sabe qualquer criança de cinco anos, é um dos valores fundamentais protegidos pela Constituição. A censura é uma abjeção esconjurada pelo mesmo texto constitucional. Vale a pena ler manifestação do ministro Celso de Mello, decano do Supremo, sobre a encrenca: 

"Sob o signo do retrocesso –cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do Estado–, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático!!", escreveu Celso de Mello em manifestação enviada à Folha.

Repare que Celso de Mello arremata a frase com um par de pontos de exclamação. Foi como se quisesse realçar o quão espantosa é a época atual. A exclamação parece ter sido abolida dos hábitos do brasileiro. O absurdo adquire uma persuasiva naturalidade. Diante de uma censura embrulhada em hipotéticos valores da família, pouca gente faz a concessão de um espanto. 

A tática de utilizar a família como biombo para o preconceito é no mínimo inusitada. A família, como se sabe, pode ser o inferno do ser humano. Muitas delas, mesmo as que são tidas como dignas e decentes, uma hora se desvirtuam. Lá um dia surge, do nada, um avô desembargador e meio esquisito, um tio prefeito que confunde prefeitura com púlpito. Tudo ao mesmo tempo. Na frente das crianças.

Por Josias de Souza

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