"Para que bengalas se podemos ter caixões", pergunta-se inquieto o coração de Bolsonaro., Afinal, ele pondera, todos vão morrer |
O presidente Jair Bolsonaro não entendeu, ou finge não ter entendido, nunca se sabe, o sentido da quarentena. E, à diferença do que passou a fazer Donald Trump, seu amigão, não quer, como diz, paralisar a economia porque os efeitos dessa ação seriam mais nefastos do que o próprio espraiamento da doença.
Bobagem! A Itália é o exemplo pronto e à vista de todos de que está errado. O país retardou as medidas de restrição de circulação, a doença se espalhou pelo Norte, chegou ao centro e agora migra para o Sul. A economia foi para o abismo. E com milhares de mortos.
Na entrevista às portas do Palácio da Alvorada, disse o presidente:
"Essa é uma realidade, o vírus 'tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra! Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia."
Ele declarou ainda que não pode se preocupar com o "politicamente correto".
Eis aí. Ao empregar essa expressão, o presidente se trai, não diz tudo o que está na sua mente — e, por isso, seu ministro da Saúde recomenda uma coisa, e ele faz outra — e evidencia o tamanho do seu equívoco
Ao declarar que não é "politicamente correto", deixa claro que, para ele, as medidas de isolamento social derivam do tal "viés ideológico" dos que, agindo, então, em defesa dos mais vulneráveis, acabam prejudicando a todos. E, no seu entendimento, quais são as pessoas vulneráveis? Os idosos. Juntando todas as peças do seu confuso quebra-cabeças, o resultado é um só: ele, claro!, diz lamentar, mas acha que a economia tem de andar, ainda que os idosos morram. Numa conversa com Ratinho, chegou a usar o exemplo da própria mãe como pessoa passível de "nos deixar".
Nunca antes na história da humanidade, facínoras à parte, chefes de estado trataram a morte com tamanha ligeireza.
Que Bolsonaro não é um humanista ou, ao menos, um homem razoável segundo parâmetros minimamente civilizados, já sabíamos. Ocorre que sua tese mata-idoso não seria eficiente nem mesmo segundo a sua pretensão: fazer funcionar a economia.
Destacarei aqui trechos do que disse o ministro Luiz Mandetta na entrevista de sábado. Prestem atenção.
"Quando a gente determina a paralisação [da circulação de pessoas], diminuem os acidentes, diminui o trauma, e sobram os leitos que eram ocupados pelo trauma para serem utilizados para outras situações. Há referências que temos de lugares com queda de 30%, 40%, 50% do nível de ocupação, o que, por si só, abre o espaço de leitos que antes estavam sendo usados por pessoas politraumatizadas poderem ser utilizados para essas viroses. Mais uma razão para a gente diminuir bastante a atividade de circulação de pessoas"
Mais:
"Hoje está cheio de professor de epidemiologia. Tá cheio de fazedores de conta. Prestem atenção! Esta epidemia é totalmente diferente da H1N1(...). Havia uma diferença enorme: havia um medicamento que todo mundo tinha na mão. Aquela H1N1 daquela época tinha uma perspectiva de vacina porque era da classe da influenza. Quem raciocinar pensando 'nesta aqui foi assim' vai errar feio. Essa não é assim. Essa causou não uma letalidade para o indivíduo. Não é esse o nosso problema. Há aqueles que falam assim: "Ah, essa doença vai matar só cinco mil, só dez mil. Não é essa a conta. A conta é: esse vírus ataca o sistema de saúde. E ataca o sistema da sociedade como um todo. Ele ataca a logística, ele ataca a educação, ele ataca a economia. Ele ataca uma série de estruturas no mundo".
E ainda:
"Por que se suspendem aulas se todas as crianças e os jovens, como vocês viram aqui, se têm a doença, são portadores assintomáticos, são sintomas leves? Por que a gente os tira das aulas? Que é muitas vezes o que falam: 'Deixa as crianças e os adolescentes irem para as aulas'. É porque eles, como portadores assintomáticos, ao voltarem, eles não sabem, eles simplesmente transmitem. Como eles voltam para casa, e nós temos aí um déficit habitacional no Brasil enorme, ele pode contaminar cinco, seis pessoas. Quando a gente diminui a mobilidade, cada um que é positivo contamina dois. Quando a gente deixa todo mundo andando, cada um contamina seis. E isso vai fazendo a progressão geométrica."
Mandetta, a exemplo de Bolsonaro, também trata da morte, mas em outro tom:
"Todos nós teremos pessoas das nossas famílias que tiveram complicações; alguns vão perder seus entes queridos. Vamos ter isso? Vamos ter isso. O problema é em que intervalo de tempo isso vai acontecer. E isso acontece todos os anos com os outros vírus. Só que eles já têm esse comportamento. As pessoas já esperam. Falam "Nossa! A minha vozinha tá bem fraquinha, se ela tiver uma gripe, ela tá um passarinho. Esse é o problema. Nós temos muitos passarinhos, que a gente quer muito bem e que podem chegar todos doentinhos ao mesmo tempo".
Mandetta tinha estado com o presidente antes da entrevista. Parece que o alvo do didatismo era seu próprio chefe. Didatismo inútil. No dia seguinte. Bolsonaro acordou e resolveu bater perna. E, como sempre, sugerindo ser um super-homem imune ao vírus, mas sem mostrar o resultado dos exames. Acha que isso é ser homem...
Bolsonaro ignora o que tenta explicar o ministro: trata-se de permitir que os hospitais continuem a oferecer leitos normais e de UTI também para aqueles que não estão com o coronavírus. Ou milhares de pessoas morrerão de outras doenças porque o sistema de saúde, público ou privado, não pode atender à demanda.
Mas então não há saída? Ora, na equação de Bolsonaro, há. E desafio alguém a demonstrar que se trata de uma conclusão arbitrária: desde já, então, seria necessário estabelecer uma idade de corte para internações. O modelo de Bolsonaro leva a uma única saída, que saída não é: o gerontocídio em massa. Afinal, como diz nosso pensador, "todo mundo vai morrer um dia". Seria, assim, como uma megarreforma da Previdência à moda bolsonariana.
Releiam as palavras do ministro da Saúde. Está tudo ali.
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