domingo, 22 de março de 2020

Nau à deriva




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Aos 74 anos, o professor Miguel Srougi, titular de Urologia da Faculdade de Medicina da USP e um dos mais conceituados médicos do país, tem pressa e aflição em se fazer entender antes que o Brasil se desintegre em putrefação social. Em artigo publicado anteontem na “Folha de S.Paulo”, Srougi dispensou floreios introdutórios: “Se havia alguma dúvida, ela não existe mais. Dentro de três semanas muitos brasileiros que hoje perambulam suavemente pelas nossas ruas morrerão pelo novo coronavírus....”, diz já no primeiro parágrafo.

Manteve o tom sombrio até o final:

“...Sinto uma aflição insuportável quando imagino o que poderá acontecer com o Brasil logo mais. Apesar de contar com autoridades de saúde decentes, competentes e comprometidas, desconfio que áreas imensas da nação serão devastadas pelo novo coronavírus, que se sentirá à vontade para evoluir num país esfrangalhado pela desigualdade e pelo abandono, habitado por uma multidão de pessoas boas e resignadas, sem condições de expressar indignação ou usufruir dos seus direitos. Pior ainda, dirigidos por governantes irresponsáveis, desprovidos de compaixão e incapazes de prover dignidade à existência humana. Enfim, autoridades que não compreendem que suas posições só foram obtidas por deferência da nação brasileira, que colocou com fé e esperança o seu destino em suas mãos”. Disse tudo, o dr. Srougi.

Não apenas ele. Qualquer cidadão de sensatez mediana já percebeu que a nau presidencial está à deriva, perdida em suas próprias simulações de comando e controle. Seja na condução da nação em tempos de pandemia, seja no manuseio disléxico de uma simples máscara protetiva ou na inconfiabilidade das informações referentes à sua própria saúde, Jair Bolsonaro e sua prole mereceriam ser confinados ao papel de coadjuvantes do drama nacional. Se possível, deixá-lo falando sozinho em “Eu, como estadista...” (designação que no cenário do mundo hoje só combina com a chanceler alemã Angela Merkel), e seguir em frente. Seguir, sobretudo, orientações que soem racionais e confiáveis vindas de nossas autoridades de Saúde, de alguns governadores, e seletas prefeituras.

Devido à crise atual, o mundo inteiro aprendeu a recitar as grandes pragas encaradas pela humanidade no passado, numa overdose histórica que nem sempre serve de referência ou termo de orientação para o mundo atual. Ainda assim, algumas repescagens são irresistíveis. A “ London Review of Books” fez um recente mergulho no livro “Florence Under Siege: Surviving Plague in an Early Modern City” (“Florença sitiada: sobrevivendo à praga numa cidade do início da era moderna”), do historiador britânico John Henderson. Dá o que pensar.

A peste de 1629 havia devastado a tal ponto a região do Piemonte italiano que seus moradores ainda errantes invejavam os que haviam conseguido se livrar do horror da vida. Florença, situada do outro lado dos Montes Apeninos, confiava na imponente cordilheira para lhe servir de salvaguarda. Mas ela se revelou permeável, e os florentinos começaram a morrer feito moscas, apesar dos esforços da Sanità, o conselho de saúde da cidade. Na Florença silenciada até manifestações de alegria intrafamiliar foram punidas com prisão. Prevaleceu o diagnóstico da Sanità de que os pobres não tinham a capacidade de compreender as obrigações coletivas e, por indisciplinados em suas relações pessoais, acabaram disseminando o contágio. Soa familiar?

Na verdade, sabe-se, não foram poucos os nobres e privilegiados que tocaram a vida na corte dos Médici como se houvesse um amanhã. Não tão diferente do espantoso caso de uma socialite/decoradora uruguaia suspeita de infectar 44 pessoas no país vizinho em 2020. Segundo noticiado pela correspondente da “Folha” Sylvia Colombo, a decoradora de 57 anos adoecera na Europa durante uma viagem no início do ano, e recebera orientação médica para se submeter a exames e medicar-se por 14 dias no retorno a Montevidéu. Ela não cumpriu nem um nem outro. Mas melhorou, e logo engatou em nova viagem a Madri, já com a Covid-19 esparramada pelo continente. Voltou a sentir-se mal. Ainda assim, no dia de seu segundo retorno, compareceu a um casamento da alta roda uruguaia, com 500 convidados. Justificativa: impossível faltar, pois considera o noivo quase um filho.

Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos não pretendem interromper o Censo populacional de 2020. Será feito on-line para quem quiser se retratar e acrescentar alguma mensagem. A reconstrução do nosso hoje tem tudo para deixar atônitos historiadores e cientistas do amanhã. Se é que haverá amanhã.

Por Dorrit Harazim

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