quinta-feira, 19 de março de 2020

Apóstolos da discórdia


Tempos de coronavírus: Homem deixa manifestação em apoio ao presidente Jair Bolsonaro usando máscara de proteção (15/03/2020)

Nas grandes crises cada governante mostra seu tamanho. Alguns se agigantam e outros se apequenam. Winston Churchill, um dos maiores estadistas do século passado, uniu os britânicos na Segunda Guerra Mundial ao não escamotear a gravidade da crise e oferecer apenas “sangue, suor e lágrimas”. Emmanuel Macron adotou postura semelhante com seu discurso “Estamos em “Guerra””. O presidente francês está unindo seu povo em uma batalha que será dura e prolongada.

O verdadeiro estadista é o que entende o sentido de emergência em uma grave crise, deixa para trás divergências e promove a união nacional. Na Segunda Guerra o inimigo comum foi o nazismo. Hoje é a pandemia causada pelo coronavírus.

Às vezes a necessidade de unir a nação impõe renúncias. Macron, por exemplo temporariamente abriu mão de sua reforma da previdência por ser um óbice para o consenso dos franceses, em uma hora tão dramática.

Nem todos os governantes são estadistas. Mas entre quem tem essa estatura e quem deixa exposta a sua mediocridade há cinquenta tons de cinza.

Vejamos Donald Trump. Derrapou nos primeiros quinze dias subestimando os riscos do Covid-19, mas soube se reposicionar. Adotou medidas drásticas e encontrou um terreno comum entre democratas e republicanos no combate à pandemia que dizima milhares de vidas e arrasta a economia mundial para uma recessão de graves proporções.

Sim, diferenças aparentemente intransponíveis podem ser superadas com empenho e liderança. Em pouco mais de um ano Israel passou por quatro eleições, diante da impossibilidade de ter um governo estável. Pois bem, o vírus levou Benjamin Netanyahu e a oposição ao entendimento em torno de um governo de união nacional.

Nas grandes crises alguns governantes não estão à altura das exigências do momento. Neville Chamberlain era o homem errado no lugar errado, no limiar da Segunda Guerra Mundial.

Hoje é o presidente Jair Bolsonaro que se candidata a esse papel.

Nesse momento tão crucial sua grande missão seria promover a união dos brasileiros em torno da defesa da saúde e da economia nacional. A sobrevivência de muitos brasileiros está ameaçada pela pandemia. É dever do presidente defendê-los.

Bolsonaro, entretanto, dedica-se à missão de dividir os brasileiros e os poderes da República, comportando-se como um artesão da discórdia. Irresponsavelmente atenta contra a saúde pública ao estimular e participar de manifestação de rua. Não satisfeito, diz que vai comemorar seu aniversário com uma “festinha” no próximo sábado. Despreza as recomendações de seu ministro da Saúde!

Mais grave, soma sua voz a de outros apóstolos da cizânia, como o bispo Edir Macedo, para quem o coronavírus é obra de satanás. Enquanto a negação da realidade se limitava ao terraplanismo, apenas caia no ridículo. Mas quando ela põe em risco a saúde das pessoas é gravíssima. É uma postura obscurantista, que menospreza os riscos da pandemia.

Ontem Bolsonaro voltou a repetir que tudo não passa de uma onda de histeria. Se é assim, por que sua equipe econômica pediu para o Congresso aprovar a decretação de estado de calamidade? O ministro Paulo Guedes estaria contaminado pelo histerismo?

A saúde do presidente também não é uma questão particular, diz de perto a todos os brasileiros, mas, na sua paranoia, considera como golpe o seu isolamento, mesmo quando ditado por razões médicas. Sua leitura conspiratória vê por traz de tudo uma ação desestabilizadora do Congresso e da Suprema Corte para apeá-lo do poder.

O Parlamento comete derrapadas, como a criação de uma nova despesa de vinte bilhões ao ano. O STF também não é ingênuo. Mas vamos ser honestos, não são eles os agentes da cizânia. Quem está desempenhando esse papel, com objetivos ainda impossíveis de descortinar, é Bolsonaro.

Exemplo disso foi a reunião entre os presidentes de dois poderes com o ministro da saúde: fato inimaginável num regime presidencialista. Mas a presença do primeiro mandatário tornou-se dispensável porque ele simplesmente não soma. Ao contrário, divide.

O presidente está se auto isolando politicamente. Por motivos ideológicos veste a armadura ideológica do seu bolsão mais radical, governando apenas para ele. Propositadamente, tenta confundir a nação valorizando as manifestações que reuniram poucas pessoas no domingo; que foram às ruas para defender que o coronavírus é mentira e atentar contra os outros poderes da República.

Não se combate pandemia e recessão com ideologia. Muito menos promovendo a dissídia entre os brasileiros. O país dispensa os apóstolos da discórdia.

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