sexta-feira, 27 de março de 2020

R$ 600 não resolvem. Perdido, Guedes some. Mundo encara crise com seriedade


Ilustração que está na mais recente capa da revista The Economist. O Estado cresce e conduz o cidadão. Este só conduz o seu cachorro. Ambos estão de máscara contra o coronavírus. Depois é preciso ver como o Estado diminui outra vez. Primeiro vem o combate ao vírus - Luca D"Urbino/The Economist
Ilustração que está na mais recente capa da revista The Economist. O Estado cresce e conduz o cidadão. Este só conduz o seu cachorro. Ambos estão de máscara contra o coronavírus. Depois é preciso ver como o Estado diminui outra vez. Primeiro vem o combate ao vírus

O Brasil corre o risco, sim, de ir para o abismo. E não é por causa da quarentena, como tenta fazer crer o presidente Jair Bolsonaro, que ontem foi destaque na imprensa internacional como o único chefe de Estado que não reconhece o coronavírus como uma grave ameaça. O que pode nos condenar ao buraco é o alheamento da realidade, que não se limita a Bolsonaro. Há nove dias, Paulo Guedes, o ministro da Fazenda, veio a público com as mãos cheias de nada: sua generosidade se limitava a um pagamento de R$ 200 a trabalhadores informais por apenas três meses. Parecia acinte. Parecia deboche. Parecia piada macabra. Mas ele estava falando sério. Ou, se quiserem, era sua seriedade possível.

Nesta quinta, em votação simbólica e virtual, a Câmara elevou esse pagamento para R$ 600, com a possibilidade de o benefício ser estendido até o fim do ano. Será pago a trabalhadores informais e a pessoas com deficiência que ainda estão na fila do INSS à espera do Benefício de Prestação Continuada (BPC). No caso de mães chefes de família, o valor vai para R$ 1.200. Marcelo Aro (PP-MG), relator do projeto, havia decidido elevar o auxílio para R$ 500, mas o próprio Bolsonaro afirmou em entrevista que conversara com Guedes e que seria possível chegar a R$ 600. 

"Ah, mas então isso é bom, Reinaldo?" É certamente melhor do que aqueles ridículos R$ 200. Quando se olha, no entanto, para o conjunto das decisões do governo, já tardias, é visível que nem Guedes nem Bolsonaro se deram conta do que vem por aí. Notem: a rigor, esse é o único dinheiro realmente novo que o governo resolveu mobilizar para enfrentar a crise. Todas as outras propostas não passam de rearranjos orçamentários, com antecipações e remanejamentos de dinheiro. Mas até isso está enrolado.

Reportagem do Estadão demonstra, por exemplo, que, de cada R$ 100 que o governo prometeu mobilizar para enfrentar a crise, R$ 64 ainda não saíram do papel porque o governo não converteu o anúncio em projeto de lei para enviar ao Congresso. O desastre se aproxima — na verdade, já está em curso —, e temos uma equipe econômica que, com a devida vênia, está brincando de discutir equilíbrio fiscal. Ele é fundamental? É, sim! Em tempos de paz. Agora se trata de pensar em enfrentar uma guerra.

O mais respeitado especialista em contas púbicas do Brasil, Raul Velloso, insuspeito de brincar com heterodoxias econômicas ou de piscar para déficit fiscal, não hesita: o governo tem de se preparar para estender esse e outros benefícios por pelo menos um ano. Em entrevista ao Jornal da Globo, afirmou: "Eu acho que vai ter uma pressão muito grande para se ter um programa de um ano, que vai gastar, com 77 milhões de pessoas, algo ao redor de 7% do PIB, que dá mais ou menos R$ 500 bilhões. Lá fora estão gastando, provavelmente, o dobro disso só com o programa de renda mínima. O nosso é a metade. Não é nada absurdo comparado com os outros".

É evidente que não podemos confrontar em valores absolutos o dinheiro que será gasto no Brasil com o desembolso de economias ricas. Fiquemos então no percentual do PIB. Segundo estudo da FVG, tudo o que o governo federal anunciou até agora de desembolso para enfrentar a crise equivale a 2% do PIB. Pois é: o pacote anunciado nos EUA corresponde a 6,3% do seu PIB; o da Alemanha, a 12%; o do Reino Unido, a 17%. Entenderam a diferença entre se dar conta da realidade e ficar com a cabeça nas nuvens, a produzir besteiras?

E quanto o governo deveria gastar? Afinal de contas, a questão do déficit deve ser uma prioridade agora? Que fale Velloso: "Na situação em que nós estamos, essas contas têm de ser deixadas um pouquinho de lado porque, primeiro, a economia está diante de uma depressão, que é um negócio terrível. É você entrar num buraco sem fundo. Nessas circunstâncias, gasta-se o que precisar gastar."

Em vez disso, temos um ministro da Fazenda que sumiu. Acabou até a empáfia e a disposição para distribuir pitos na imprensa. Afinal, é o homem que, há pouco mais de um mês, no dia 12 de fevereiro, cantava as glórias do dólar valorizado e vituperava contra domésticas que iam para a Disney. Outros governos já se preparavam para enfrentar o desastre. Por aqui, pisava-se nos astros desastrados. Por aqui, é mais fácil condenar velhinhos pobres à morte e promover arruaça.

Capa da mais recente edição a revista The Economist traz uma mão muito visível, a do Estado, no controle do cidadão, que só controla o seu cachorro. Ambos estão de máscara. Sim, é o poder do Estado que se revela no combate ao coronavírus. Depois, alerta a revista, é preciso saber como ele diminui outra vez. Vamos combinar uma coisa? Primeiro o vírus, depois o resto. O Reino Unido — e a Economist é inglesa — vai injetar na economia 17% do seu PIB para minorar o desastre.

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