Talvez a culpa seja do cancelamento do carnaval, dias de alegria, mesmo fugazes, em que “uma ofegante epidemia” invade o corpo e a alma da nossa “pátria-mãe tão distraída”. Em vez de folia, peito apertado, coração doído, bolso e barriga vazios, incertezas.
Imersos em uma polipandemia – na qual ao vírus implacável somam-se um presidente da República abjeto e incapaz e um desgoverno jamais visto -, aos brasileiros resta o Vai Passar do genial Chico Buarque. Se naqueles tempos derrotou-se a ditadura militar, não será um cordão de negacionistas despreparados, que digladia com inimigos inexistentes e tenta aplainar o planeta com rolo para massa, que conseguirá destruir o país e toda a energia vibrante que ele tem.
Pode parecer pura alegoria diante do acúmulo das más notícias dos últimos tempos. Mas em dias turbulentos, em que tudo pode sempre piorar, temos de ser capazes de identificar os brilhos de sanidade e resistência que podem fazer história. Os profissionais da saúde e a ciência, em especial a velocidade com que as vacinas contra a Covid-19 foram desenvolvidas, abrem essa ala.
Em um país acostumado a ser “subtraído em tenebrosas transações”, uma pequena luz vira farol. Ainda que poucos, exemplos da última semana animam.
Se por um lado vê-se um Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República, que age mais como advogado do presidente Jair Bolsonaro do que como defensor público, por outro está o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União. Na sexta-feira ele apertou o cerco para que o Ministério da Saúde e o Exército expliquem, tintim por tintim, as estripulias com a cloroquina – da indicação oficial de uso, sem aval da Anvisa e de toda a comunidade científica, à produção pelos fardados, com compra superfaturada de insumos.
No Senado, nem Rodrigo Pacheco (DEM-MG), eleito presidente da Casa com o apoio de Bolsonaro, conseguiu evitar o desastre do ministro Eduardo Pazuello, que, convidado para falar sobre as ações de combate à pandemia e com isso evitar uma Comissão Parlamentar de Inquérito, espantou até aliados fiéis.
Tropeçou nas suas próprias palavras, disse, desdisse e negou que dissera o que já havia dito. Mentiu, confundiu. Abriu a porteira para a necessária e agora inevitável CPI da pandemia, o que é uma excelente notícia.
No STF, ainda que Ricardo Lewandowski tenha pedido vistas ao voto do relator Luís Roberto Barroso, contrário à defesa do deputado Arthur Lira (PP-AL), desnuda-se a face perversa do recém-eleito presidente da Câmara, acusado por sua ex-mulher, Julianne Lins. A possibilidade de remissão da notícia-crime ao Juizado de Violência Doméstica, retirando a denúncia dos casos protegidos por foro especial mesmo depois de Lira assumir a principal cadeira do Legislativo, é um alento, uma luz.
Também vem do Supremo a decisão que reafirma a obrigatoriedade do uso de máscaras em áreas de acesso público – estabelecimentos comerciais e industriais, escolas, templos religiosos – e nos presídios, medida vetada por Bolsonaro em agosto do ano passado.
A votação enterra um dos pilares do negacionismo frente à pandemia. Isso depois de a ideologização do uso da máscara chegar ao absurdo de visitantes do Planalto serem aconselhados a retirá-la antes de se encontrar com o presidente. Na última reunião ministerial, só Tereza Cristina, da Agricultura, e Paulo Guedes, da Economia, usaram a proteção.
Depois de desdenhar da vacina o quanto pode, Bolsonaro correu para importar, a qualquer preço e condições, uma pequena partilha do imunizante para que pudesse aplicar a primeira dose antes do arquiinimigo João Doria, que, goste-se ou não dele, tem todos os méritos pela vacinação no país.
Espremido pela realidade, que não comporta chacotas e invencionices, Bolsonaro teve de ceder. Não por crença, mas por cálculo político. Ao apoiar a imunização de sua mãe nonagenária, o presidente sinalizou em favor da vacina. Aparentemente, não temeu que ela virasse jacaré.
São pequenas vitórias, mas elas exibem o valor da luta. Longe de pregar a inação, o “vai passar” é a certeza de que, com a fibra de muitos, não há mal que sempre perdure. A pandemia vai passar. Bolsonaro vai passar.
Por Mary Zaidan
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