O presidente Jair Bolsonaro agora aproveita solenidade de formatura de militares para debater assuntos de governo, como o preço dos combustíveis; para anunciar novas trocas no governo e, ora vejam, para evidenciar que, por ele, não viveríamos numa democracia. Tudo fora do lugar, como de costume. Mas sempre revelador.
O busílis é o seguinte. Ele participou de uma solenidade de formatura da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas (SP). E disse este mimo:
"Alguns acham que eu posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E apesar de tudo eu represento a democracia no Brasil"
Em fala tão curta, uma soma formidável de bobagens.
Como se nota, está dizendo a militares que, por ele, viveríamos numa ditadura. É aquilo de que ele gosta. É o seu sonho. Mas, lamenta, é uma democracia, e ele diz que a "representa".
Transcrevo o significado de "representar" que traz o Dicionário Houaiss, na acepção empregada pelo presidente:
"ser a imagem ou a reprodução de; trazer à memória; figurar como símbolo; aparecer numa outra forma"
Obviamente, Bolsonaro poderia, nesse caso, "representar" a ditadura, que ele defende, jamais a democracia, que ele ataca. As coisas têm de ser ditas de um outro modo.
Ele é um presidente democraticamente eleito. Aí, sim: pode-se lamentar o fato, mas não ignorá-lo.
Afinal, a democracia, o melhor dos piores regimes, tem também os seus desencantos, os seus erros, os seus desatinos. Mas será sempre preferível a qualquer ditadura, por mais virtudes que esta ambicione ter. Sendo ditadura, virtuosa nunca será. E ocorre de se ter de conviver com gente como Jair Bolsonaro e Donald Trump. Por isso, mas é matéria para outro texto, é preciso que a democracia esteja preparada para se defender do ataque daqueles que usam suas licenças para solapá-la. Mas vamos adiante.
Bolsonaro despreza a democracia e, pois, por óbvio, canta as virtudes da ditadura — que, na sua cabeça, teria de ser militar. Aliás, toda ditadura é militar, né? Sem a garantia das baionetas, um tirano, mesmo que civil, não se impõe.
No caso do presidente, a gente sabe, ele se mostra mesmo é saudosista da ditadura militar. Que pessoa injusta!
Já escrevi aqui que o melhor dos piores regimes — a democracia — tem seus defeitos. E um deles é eleger uma pessoa como Bolsonaro. Será que ele teria alguma chance de liderar uma ditadura militar?
Não custa lembrar que ele foi chutado do Exército. Em companhia de um "parça", como informou reportagem da Veja, planejou explodir algumas bombas em instalações militares e em mandar para os ares a adutora do Guandu, no Rio. O nome disso é terrorismo. Tudo para protestar contra baixos salários. Acabou sendo absolvido pelo Superior Tribunal Militar num resultado escancaradamente contra as evidências. Mas foi chutado do Exército.
O QUE PENSAVAM SOBRE ELE
Os superiores de Bolsonaro tinham uma péssima impressão a seu respeito. Uma ficha de informações que há sobre ele, de 1983, de autoria da Diretoria de Cadastro e Avaliação do então Ministério do Exército, apontava que, aos 28 anos, "deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de 'garimpo de ouro'." E mais:
"Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente".
Informa reportagem da Folha:
"Ouvido pelo conselho, o superior de Bolsonaro, coronel Carlos Alfredo Pellegrino, disse que tentou demovê-lo da ideia do garimpo, mas conheceu 'pela primeira vez sua grande aspiração em poder desfrutar das comodidades que uma fortuna pudesse proporcionar'".
Mais considerações de seus superiores:
"A imaturidade [de Bolsonaro] é de um profissional que deveria estar dedicado ao seu aprimoramento militar, através do adestramento, leitura e estudos, e não aventurar-se em conseguir riquezas."
Ou ainda:
"[Bolsonaro] tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos".
Gosto, em especial, desse trecho que trata da "falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos".
GEISEL
Havia gente mais graduada que achava que Bolsonaro não batia bem dos pinos. Em entrevista concedida em 1993 aos pesquisadores Maria Celina D´Araujo e Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, afirmou o ex-presidente Ernesto Geisel, o penúltimo general a comandar o país durante a ditadura militar:
"Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar. Mas o que há de militar no Congresso? Acho que não há mais ninguém."
Uma nota: Geisel estava defendendo a tese de que os militares haviam se afastado da política e de que era para valer. Como a gente pode notar, ele errou, né? No Brasil de hoje, os milicos estão cuidando até de espinhela caída e unha encravada. Além do zelo com que se fabricaram até agora perto de 250 mil mortos.
CONCLUO
Numa ditadura militar, com sua "falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos", Bolsonaro estaria numa função subalterna qualquer caso tivesse continuado no Exército. Mas ele foi defenestrado de lá.
Infelizmente, gente assim acaba prosperando nas democracias, que ele próprio despreza. Que o regime democrático saiba bani-lo, dentro das regras do jogo.
Por Reinaldo Azevedo
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