O cérebro de Jair Bolsonaro começa a funcionar no instante em que ele acorda e não para até o momento em que ele pensa em Hamilton Mourão. Passou a enxergar um inimigo no velho amigo. Em menos de uma semana, o capitão excluiu o general de duas reuniões ministeriais. Ainda não percebeu. Mas está transformando o gabinete da vice-presidência numa trincheira.
Em dezembro de 2018, dias antes de tomar posse, Mourão avisou: "Serei uma mistura de Marco Maciel e Aureliano Chaves". Referia-se aos vices de Fernando Henrique Cardoso e do general João Baptista Figueiredo.
Maciel foi um vice dos sonhos. Magro e discreto, era quase invisível. Aureliano, entretanto, foi um pesadelo na vida do último presidente da era militar. Corpulento e expansivo, ocupava todos os espaços.
"O Marco Maciel era uma pessoa extremamente discreta, um político hábil. É um bom exemplo de vice-presidente", enalteceu Mourão, antes de acrescentar: "O Aureliano era um pouquinho mais audaz. Mas é também um bom exemplo para ser seguido. Aureliano era político. Eu acabo aprendendo."
Afora as substituições rotineiras, Aureliano, o protótipo de Mourão, comandou o Planalto em duas longas interinidades. Numa, iniciada em setembro de 1981, um infarto obrigou Figueiredo a tirar licença de 60 dias. Voltou 49 dias depois. Estava incomodado com a desenvoltura do vice.
Noutra interinidade, em julho de 1983, Figueiredo ausentou-se do cargo por tempo indeterminado. Foi implantar pontes de safena no peito, numa clínica de Cleveland, nos Estados Unidos. Reassumiu em 44 dias.
Na primeira interinidade elástica, Aureliano fez até discurso de posse. Pregou a união nacional. Recusou-se a executar uma providência que todos no governo consideravam inevitável. Ele não expulsou do Brasil os padres franceses Aristides Camio e François Gouriou. Ambos haviam sido presos sob a acusação de insuflar posseiros, instando-os a pegar em armas na região do Araguaia.
Na segunda interinidade hipertrofiada, Aureliano meteu-se na seara de Delfim Netto, o Posto Ipiranga da época. Enquanto Delfim negociava um acordo com o FMI, para restabelecer o crédito do Brasil junto aos bancos internacionais, Aureliano pregava a moratória. Ecoava o PMDB, na época o maior partido da oposição. Defendia a suspensão do pagamento da dívida externa por quatro anos.
As relações entre Aureliano e Figueiredo foram ao freezer. E o vice sentiu-se à vontade para alçar seu voo solo. Abriu uma dissidência no PDS, o partido da ditadura, lançando-se candidato ao Planalto à revelia do general-presidente.
Aureliano começou a tricotar com tecelões oposicionistas. Gente do porte de Ulysses Guimarães. Passou a defender as eleições diretas. Contido pelos ministros militares, não foi aos comícios das Diretas Já. Mas converteu o Palácio do Jaburu, a residência oficial do vice, num centro de maquinações oposicionistas.
Em sua escalada, Aureliano ajudou a costurar a chamada Frente Liberal, braço dissidente do PDS. A Frente política virou partido: o PFL, depois rebatizado de DEM. O grupo do vice de Figueiredo saltou da canoa da ditadura para a caravela de Tancredo Neves, emplacando José Sarney como vice na chapa que prevaleceria no Colégio Eleitoral, em 1985.
Com a morte de Tancredo, Sarney herdou o trono. Aureliano foi premiado com o Ministério de Minas e Energia. Coisa combinada com Tancredo antes de sua morte. Aureliano disputaria a Presidência da República em 1989, com desempenho humilhante.
Morto há 15 anos, Aureliano retorna à conjuntura como "bom exemplo" de Hamilton Mourão. No afã de desligar o vice da tomada, Bolsonaro demora a perceber que ócio não significa necessariamente inatividade. Mourão apenas ganhou mais liberdade para fazer qualquer coisa. Inclusive para refletir sobre a hipótese de aceitar o convite do PRTB, seu partido, para disputar a sucessão de 2022 como cabeça de chapa.
Por Josias de Souza
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