segunda-feira, 22 de maio de 2023

Michelle adota a ética transigente de parlamentar antes de obter um mandato



Com as finanças pessoais em desalinho, Michelle Bolsonaro atribui à perseguição política a conversão dos seus gastos em caso de polícia. "Percebi que os ataques a mim aumentaram quando levantaram a possibilidade de uma candidatura", disse ela à revista Veja, antes de converter a hipótese de entrar para a política numa ameaça real: "Hoje estou no PL porque acredito no propósito, na missão. Estou lá para ajudar o partido do meu marido e porque eles me veem com esse potencial de influenciar outras mulheres. Agora, se no meio do caminho o meu coração arder, eu posso vir a ser candidata a um cargo do Legislativo."

Toda farsa tem dois gumes. Antes mesmo de obter o primeiro mandato, madame incorpora a oratória prática que costuma permear os discursos de parlamentares que enxergam as vantagens de trocar os extremos de ascese e culpa por uma moral fluida e transigente. Max Weber batizou essa moral utilitária de ética da responsabilidade, oposta à ética da convicção, que seria a dos santos e profetas. A diferença entre as duas éticas está na posição dos meios e dos fins. Na ética da convicção meios e fins se mostram indistinguíveis, como se fossem uma coisa só, enquanto que na ética da responsabilidade aparecem separados e em estado de constante fricção.

Casada com um sujeito "pão duro", avesso à ideia de homenagear a companheira com um cartão de crédito, Michelle usava o cartão vinculado à conta corrente da amiga Rosimary Cardoso Cordeiro. A Polícia Federal descobriu que as faturas eram liquidadas em dinheiro vivo pelo coronel-pagador Mauro Cid. "Nunca me pediram explicações", queixa-se a ex-primeira dama. "Uso esse cartão desde 2011. Eu era quebrada. Em 2007, casei com o Jair, fui para o Rio de Janeiro. Tenho três irmãos. A minha família é bem simples, e eu sempre cuidei dos meus irmãos."

Deve-se ao próprio ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, não à Polícia Federal, a maledicência que revolta Michelle. Em conversa vadia com uma das assessoras de madame, pescada pelos investigadores no celular de Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens comparou os pagamentos das despesas da então primeira-dama à rachadinha. "É a mesma coisa do Flávio", disse Cid, numa alusão ao primogênito de Bolsonaro. E Michelle: "O limite do meu cartão de crédito era de R$ 1.800, porque eu não tinha como comprovar renda. Aí essa minha amiga ofereceu um cartão adicional na conta dela, que tinha um limite maior. Eu pagava minha parte na fatura. Tenho todos os comprovantes. Esses achismos destroem a reputação das pessoas."

A exemplo do marido, Michelle joga Mauro Cid ao mar. Depois de se servir dos bons préstimos do personagem como se ele fosse um estafeta das pulsões patrimonialistas da família, madame alega que não tinha "nenhuma" relação com o coronel. "O meu contato com ele se dava por meio das minhas assessoras. Ele pagava minhas contas pessoais porque era ele que ficava com o cartão da conta-corrente do meu marido. Todo o dinheiro usado pelo coronel para pagar minhas despesas foi sacado da conta pessoal do Jair, dos rendimentos dele como presidente da República. Não tem um tostão de recursos públicos. Temos os extratos para provar isso".

Pessoas convencionais cuidam das próprias contas. Mas alguma coisa subiu à cabeça de Michelle depois que o marido foi transportado da planície do baixo clero da Câmara para o Planalto. E não foi o bom senso. "Antes do Jair se tornar presidente, eu administrava as contas da nossa casa", declarou madame. "Quando chegamos no Alvorada, tinha essa figura para fazer esse trabalho. Pagar as despesas do dia a dia. A gente tinha vários eventos, uma demanda muito grande de trabalho, então a gente deixava tudo na planilha. Eu passava para a minha assessora, que passava para o Cid, que tinha acesso ao cartão pessoal. Ele sacava e pagava a manicure ou cabeleireiro, um dinheiro para o lanche das crianças".

Falta ao lero-lero de Bolsonaro e de Michelle o complemento documental. No gogó, madame dispõe de "todos os comprovantes" de suas compras. E o marido "pão duro" disporia de extratos bancários capazes de comprovar a origem lícita das verbas que, em plena era do Pix, o coronel Cid convertia em moeda sonante nos saques contínuos e fracionados que realizava num terminal instalado nas dependências do Planalto. Por enquanto, serviu-se à platéia apenas a saliva. Notas e extratos ainda não chegaram à vitrine.

Michelle disse meia dúzia de palavras também sobre as joias sauditas apreendidas por fiscais da Receita na alfândega de Guarulhos. "O erro aconteceu no fato de a assessoria do Ministério de Minas e Energia não ter comunicado à minha assessoria, já que era um presente endereçado à primeira-dama. A gente nunca ficou sabendo disso." Engano. O "erro" foi bem outro. Entregues ao então ministro Bento Albuquerque, que representara Bolsonaro em viagem à Arábia Saudita, os diamantes foram escondidos na bagagem de um assessor que, ao desembarcar, tomou a fila dos viajantes que não têm "nada a declarar" ao Fisco. Por uma emboscada da sorte, o logro foi detectado pelo aparelho de raio-x.

Na versão de Michelle, se o Ministério de Minas e Energia, então chefiado por Bento, tivesse entrado em contato, sua assessoria "com certeza iria verificar os trâmites legais para ficar com o presente ou colocar no acervo da Presidência". Novo engano. Não havia dúvida quanto à propriedade da mercadoria. As joias pertenciam à União. Conforme esclareceram os fiscais ao próprio Bento, bastaria um ofício convencional para que fossem liberadas e incorporadas ao patrimônio público.

Os fatos demonstraram que tampouco havia dúvida quanto ao desejo do casal Bolsonaro de se apropriar do embrulho. A ânsia da apropriação indébita tornou-se real com um pacote de joias masculinas. Trazido pela mesma comitiva, o estojo destinado a Bolsonaro cruzou a alfândega na bagagem de Bento. Na sequência, foi surrupiado pelo capitão. A mercadoria estava num depósito na casa do amigo Nelson Piquet quando o Tribunal de Contas da União ordenou que fosse devolvida.

Ecoando o marido, Michelle referiu-se às joias afanadas com desdém: "No final de 2022, chegou aquele kit masculino no Alvorada. Se chegou ali, já tinha passado por todo um trâmite da Presidência da República. Ele ficou uns três dias em cima da mesa. Nós tínhamos um aparador no qual ficavam todos os presentes que subiam da ajudância de ordem. Quando eu abri, pensei: 'Não é nem a cara do Jair. Abotoadura, ele não usa'."

Mal comparando, Michelle fala como um parlamentar novato, desses que se candidatam ao Congresso imaginando-se portadores de uma vocação para a vida pública. Pessoas assim ardem no desejo de servir ao povo. Mas as boas intenções se esvaem quando caciques e raposas da política apresentam as mumunhas aos recém-chegados. No caso de madame, a adaptação precede a candidatura. É como se o trânsito pelos subterrâneos do Planalto e do Alvorada propiciasse à mulher de Bolsonaro uma espécie de curso de formação na baixa política.

Nesse contexto, meios e fins acabam se confundindo, como se fossem a mesma coisa. Calouros e veteranos se tornam indistinguíveis. Envoltos numa mesma bruma de mordomias e verbas, todos os gatunos são pardos. Michelle ainda não notou. Mas, na retórica, tornou-se uma típica parlamentar brasileira. Grosso modo falando. O coração de madame arde. Só falta o mandato.

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