domingo, 2 de abril de 2023

Indignação, engajamento e lucidez


Ampliar gastos com políticas sociais e de desenvolvimento sem corrigir suas distorções e sem melhorar sua qualidade só perpetuará a miséria e a desigualdade que envergonham o País


A educação, diz a Constituição, é direito de todos e dever do Estado. Mas o abismo entre a norma e a realidade ganhou face em uma reportagem do Globo Rural na comunidade quilombola Kalunga, no Tocantins, onde 60 alunos, do infantil ao fundamental, se espremem num casebre de taipa. Por falta de salas e banheiros, é comum estudarem e defecarem ao relento. O drama desses descendentes de escravos ecoa o dos indígenas Yanomamis desnutridos, doentes, acossados por criminosos. Por vezes os holofotes da mídia flagram a tragédia desses cidadãos de “segunda classe”, violentados pela fome, pelo crime, pela falta (ou pela destruição em deslizamentos) de um teto ou esgoto. É preciso inflamar a indignação. Essas não são catástrofes “naturais”, mas causadas por mãos humanas, ou pela falta delas. E não são um destino. Povos hoje modelos de desenvolvimento, como os escandinavos ou os tigres asiáticos, eram há poucas gerações pobres e ignorantes.

Mas, se a indignação se reduz à multiplicação de expletivos, o risco é apaziguar subjetivamente o senso de injustiça sem fazer nada para objetivamente repará-la. Numa dialética perversa, esse tipo de inconformismo acentua tensões, mas consolida a conformidade. Se o Brasil se quer digno, é preciso se envergonhar. Mas, se quer que essa vergonha seja produtiva, é preciso se engajar. E, se quer que esse engajamento seja eficaz, é preciso raciocinar.

O PT, por exemplo, se elegeu agora denunciando toda essa miséria. Mas o PT esteve no poder por 14 anos. Caracteristicamente, ele alardeia que a solução é lhe dar mais poder para controlar a sociedade e o Estado e mais dinheiro para políticas públicas. Mas, caracteristicamente, não há autocrítica ou revisão dessas políticas. Se fórmulas fabricadas pelo marketing, como a volta da “picanha e cerveja” ou a “inclusão do pobre no orçamento”, têm tanto apelo, é por diagnosticarem males reais: a erosão da renda e a exclusão social. Mas que dizer dos remédios? Sua proposta para reduzir a desigualdade e promover o desenvolvimento é mais do mesmo: ampliar despesas – seja via aumento de impostos, da dívida pública ou da inflação – para distribuí-las a consumidores, via transferências de renda, e a produtores, via subsídios. Estatísticas do FMI, porém, indicam que só o gasto com “proteção social” no Brasil (14,3% do PIB) está entre os maiores do mundo, próximo ao da Espanha (15,8%) ou da Noruega (15,6%). Ou seja: o problema é menos de quantidade que de qualidade.

A Previdência, por exemplo, representa 70% dos gastos sociais, mas beneficia, sobretudo, a classe média e os servidores. As universidades federais consomem a maioria dos recursos da União para educação, mas beneficiam universitários ricos. Benefícios fiscais privilegiam corporações improdutivas. Leis tributárias e trabalhistas distorcem e desencorajam investimentos. Custos crescentes de um funcionalismo infenso a metas de desempenho comprimem investimentos públicos e gastos sociais. O capital humano, o principal motor da igualdade, se degrada a olhos vistos.

O economista Armínio Fraga demonstrou que só reformas para eliminar privilégios e regressividades no serviço público, Previdência e subsídios economizariam 3% do PIB cada – 9% no total. Numa tacada, poderia se reduzir a dívida e os juros, ampliando as condições de crescimento e geração de emprego e renda, e robustecer investimentos de alto retorno social (como infraestrutura e educação) e transferências de renda para os vulneráveis. Isso, sim, incluiria o pobre no orçamento.

Mas o governo não mostra interesse em atacar estas disfunções, só em abastecê-las com mais “licenças para gastar”. Aqui uma indignação engajada e lúcida se faz necessária. Debates fiscais (sobre o tamanho do Estado) ou administrativos (sobre sua eficiência) parecem abstratos, e, em tese, as ambições do governo de reproduzir as mesmas políticas ampliando suas despesas servem aos “pobres”. Na prática e concretamente, a manutenção deste status quo é a maior responsável por perpetuar a miséria de crianças quilombolas, indígenas e faveladas.

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