sexta-feira, 28 de abril de 2023

A maior "fake news" sobre o PL das "fake news"; com mais Deus e sem agência



Críticos do PL das "fake news" criaram uma "fake news": dão a entender que o texto cria um elenco novo de imputações penais, tolhendo, assim, a liberdade de expressão. É uma farsa. Não há um só comportamento que, não sendo crime fora das redes, passará a sê-lo dentro delas. E também o contrário: as plataformas não diluem ou apaga conteúdos criminosos. As redes têm o formidável poder multiplicador tanto do belo como do horror. Infelizmente, o segundo tem-se sobreposto ao primeiro. E chegou a hora de disciplinar essa terra sem lei de maravilhas e trevas.

O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) divulgou ontem à noite o "PL das Fake News", com votação prevista para o dia 2. Para ser aprovado na Câmara, precisa da maioria simples, desde que exista quórum de 257 parlamentares. Se acontecer, o texto segue para o Senado, onde começou a tramitar. Essa Casa, então, aceita ou rejeita apenas o que foi alterado. O texto segue depois para sanção presidencial.

Silva retirou da versão final a criação de uma agência reguladora para supervisionar as plataformas. Era um dos pontos que geravam resistência e, vejam que coisa!, açulavam os biltres a espalhar "fake news" sobre o... PL das "fake news". Extremistas de direita passaram a acusar a criação de um suposto "Ministério da Verdade", numa alusão a "1984", de George Orwell, o que é tolice. Então pronto! O troço não está mais lá. Mas é evidente que algum órgão haverá de ser criado. E entendo que isso serve até à segurança das plataformas.

Elas também fizeram um lobby pesado, na linha "terror argumentativo". Uma executiva da Meta chegou a vocalizar essa estultice. No mesmo dia, a bobagem saiu da boca de Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Ótimas companhias...

RELIGIÃO
O relator fez questão de tocar duas vezes na questão religiosa. Como se lembram, o deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), uma das mais estridentes vozes da extrema-direita, inventou a mentira de que, com a aprovação do PL, a Bíblia poderia ser censurada. Curiosidade à margem: os e as porta-vozes desse cara durante a Lava Jato não se envergonham nem um pouquinho? Não, né? Vergonha é algo que ou se tem ou não se tem. Sigamos.

Explicita o Parágrafo Único do Artigo 1º:
"As vedações e condicionantes previstos nesta Lei não implicarão restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à livre expressão e à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural, nos termos dos arts. 5º e 220 da Constituição Federal."

No Parágrafo 3º, Inciso III, lê-se que a aplicação da lei deve observar:
"o livre exercício da expressão e dos cultos religiosos, seja de forma presencial ou remota, e a exposição plena dos seus dogmas e livros sagrados"

Assim, ninguém vai censurar a Bíblia. Essa controvérsia é coisa de picaretas. A Constituição assegura a liberdade de religião, mas ninguém, mesmo sendo padre ou pastor, pode pregar a perseguição a gays, por exemplo. "Ah, mas um religioso estará proibido de dizer nas redes que sua religião entende como aceitável apenas a união entre heterossexuais, por exemplo?"

Isso pode ser estupidamente atrasado, e é, mas não é ilegal nem fora das redes. O que os religiosos já não podem fazer hoje, mesmo sem o PL das "fake news", é pregar perseguição e incitar o ódio.

"Ah, mas e perseguir religiões de origem africana em nome do meu Deus? Isso eu posso?" Nem nas redes nem fora dela. Já há penas para isso. Que parte essa gente finge não entender?

IMUNIDADE PARLAMENTAR
O Parágrafo 6º do Artigo 33 dispõe:
"A imunidade parlamentar material, na forma do art. 53 da Constituição Federal, estende-se aos conteúdos publicados por agentes políticos em plataformas mantidas pelos provedores de redes sociais e mensageria privada".

As plataformas, contrárias ao PL, e alguns críticos ou desinformados ou de má-fé veem aí um absurdo, que estaria a distinguir os políticos de cidadãos comuns. Outra bobagem. O Artigo 53 da Constituição assegura a imunidade para o exercício do mandato, não para cometer falcatruas — tanto é assim que parlamentares podem ser denunciados e virar réus; se condenados, perdem o mandato.

ATENÇÃO! Se cometerem nas redes o que é proibido fora das redes, estarão sujeitos aos mesmos riscos. Hoje, sem PL de "fake news", páginas de parlamentares já podem ser retiradas do ar. Em caso de incitamento ao ódio ou de crime eleitoral, ficarão sujeitos às mesmas medidas. STF e TSE não precisam de um PL de "fake news" para fazer valer a Constituição e as leis.

Se a Carta não impediu a ação dos tribunais, por que haveria de fazê-lo uma lei? É questão de lógica elementar.

TEMAS QUE REQUEREM O DEVER DO CUIDADO
Será que o PL das "fake news" impede o debate político, ideológico, a manifestação em favor de um partido? Será mesmo que você pode ser punido até por não gostar de bolo de fubá? O texto estabelece que se deve evitar a disseminação de conteúdos ilegais. Não sei se notaram: JÁ SÃO ILEGAIS HOJE. Mas, para facilitar o trabalho das empresas, especifica-se no Artigo 11:
Art. 11. Os provedores devem atuar diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços, envidando esforços para aprimorar o combate à disseminação de conteúdos ilegais gerados por terceiros, que possam configurar:
I - crimes contra o Estado Democrático de Direito, tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940;
II - atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo, tipificados pela Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016;
III - crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, tipificado no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940;
IV - crimes contra crianças e adolescentes previstos na Lei nº 8.069, de 13 de julho 1990, e de incitação à prática de crimes contra crianças e adolescentes ou apologia de fato criminoso ou autor de crimes contra crianças e adolescentes, tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940;
V - crime de racismo de que trata o art. 20, 20-A, 20-B e 20-C da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989;
VI - violência contra a mulher, inclusive os crimes dispostos na Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021;
VII - infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias quando sob situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, de que trata o art. 10 da Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977."

Perceberam? A proposta não cria um elenco novo de crimes. Apenas lembra que as redes viraram um meio de difundi-los e cabe aos provedores a atuação para combatê-los.

RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL
O PL também trata da responsabilização civil das plataformas, coisa a que todos estamos sujeitos. Por que seria diferente com elas? Define o Artigo 6º
Art. 6º Os provedores podem ser responsabilizados civilmente, de forma solidária:
I - pela reparação dos danos causados por conteúdos gerados por terceiros cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade de plataforma; e
II - por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros quando houver descumprimento das obrigações de dever de cuidado, na duração do protocolo de segurança de que trata a Seção IV.

Observem que a responsabilização civil se aplica no caso de distribuição de conteúdo "por meio de publicidade" e quando a empresa descumpre o "dever de cuidado de que trata a Seção IV".

E como é que se dá esse dever do cuidado? Escreverei outro texto tratando desse e de outros aspectos do PL. Mas o Artigo 7º impõe uma tarefa absolutamente necessária às plataformas:
"Art. 7º Os provedores devem identificar, analisar e avaliar diligentemente os riscos sistêmicos decorrentes da concepção ou do funcionamento dos seus serviços e dos seus sistemas relacionados, incluindo os sistemas algorítmicos".

Como se nota, não terão de se ocupar de radicais que gostam ou não gostam de bolo de fubá, Bolsonaro, Lula, Corinthians, Flamengo, socialismo, capitalismo, armas... Escolham o tema aí. O tarado por pistolas, por exemplo, pode continuar a exercer o seu vício. Encontrará seguidores. Cabe indagar: ele incita a que outros usem as ditas-cujas contra terceiros, em escolas ou logradouros públicos, por exemplo? Não pode. Mas repito: já não pode fora da rede.

Ainda há muita coisa a tratar, como transparência, moderação, remuneração de conteúdo jornalístico, disciplina para provedores de mensagens instantâneas etc.

CONCLUSÃO
A agência de regulação está fora do texto. Tinha virado uma bandeira dos que queriam sabotá-lo. Da mesma sorte, ninguém vai censurar a Bíblia ou usar o PL para regular a religião: os que hoje já não podem cometer crimes em nome de sua fé continuarão a não poder.

O PL das "fake news" não cria um novo Código Penal nem introduz naquele texto imputações novas. Você não deve ser um criminoso fora das redes. Nem dentro delas. A única novidade é que o Estado brasileiro vai dizer às plataformas: "Esse é o negócio de vocês; é assim que vocês se tornaram máquinas multibilionárias, mais ricas e poderosas do que boa parte das nações da Terra. Então lhes cabe, também, o dever do cuidado porque, afinal, Estados paralelos vocês não são". Não é tão difícil de entender.

Nenhum comentário: