sábado, 15 de janeiro de 2022

Não é por acaso que é secreto (Editorial do Estadão)



Revelado pelo Estado, o esquema do orçamento secreto pode parecer, aos olhos de algumas pessoas, uma manobra de difícil compreensão e, em certo sentido, de menor gravidade. Seria mais uma tática, entre tantas existentes, para agradar à base aliada do governo no Congresso. Além disso, segundo essa lógica, o escândalo não seria especialmente danoso, uma vez que muitos dos recursos destinados por meio do orçamento secreto teriam ido para finalidades louváveis, como educação e saúde.

Toda essa tentativa de defender o indefensável – num Estado Democrático de Direito, não existe uso de recurso público sem transparência – cai por terra, no entanto, quando vem à tona o efetivo destino dado às verbas públicas por meio do orçamento secreto. Conforme revelou o Estado, uma ONG de Léo Moura, ex-jogador do Flamengo, recebeu, nos últimos dois anos, R$ 41,6 milhões, por força de indicações de políticos aliados do Palácio do Planalto. Um dos principais padrinhos dos pagamentos foi o deputado Luiz Lima (PSL-RJ).

Tamanha é a distorção gerada por esse sistema que a ONG de Léo Moura foi a entidade que mais recebeu recursos da Secretaria Especial do Esporte, do Ministério da Cidadania. A segunda colocada, a Confederação Brasileira do Desporto Escolar (CBD), recebeu R$ 27,5 milhões, seguida da Confederação de Desportos Aquáticos (R$ 9,1 milhões), Ginástica (R$ 8,4 milhões), Vôlei (R$ 8,4 milhões) e Boxe (R$ 7,1 milhões).

A principal ação da ONG de Léo Moura é um projeto de escolinhas de futebol chamado Passaporte para Vitória, que atende, segundo a entidade, 6,6 mil jovens de 5 a 15 anos no Rio de Janeiro e no Amapá. As inscrições são feitas por ordem de chegada, sem critério social. A entidade não fornece alimentação ou transporte.

Segundo o Estado apurou, os R$ 41,6 milhões foram usados para a manutenção de espaços e pagamento de funcionários, além da compra de chuteiras, caneleiras, uniformes e acessórios. No Amapá, por exemplo, foram comprados 15,6 mil pares de chuteiras e caneleiras, ao custo de R$ 2,1 milhões. Também foram adquiridas 1,6 mil unidades de um paraquedas especial, para treinamento de resistência, ao custo de R$ 128 mil.

Questionado sobre o uso dessas verbas, o Ministério da Cidadania alegou que os recursos foram indicações de parlamentares, de execução obrigatória. Ou seja, o governo federal não teria responsabilidade sobre seu destino. Este é mais um aspecto disfuncional do orçamento secreto, além da falta de transparência. A atuação do Executivo federal – no caso, a decisão sobre investimentos de uma secretaria do Ministério da Cidadania – já não seria responsabilidade do Executivo federal.

Além de profundamente ineficiente, essa confusão de funções é bastante problemática para a responsabilidade política, elemento fundamental do regime democrático. Quem o cidadão deverá responsabilizar, com o seu voto, pelas ações do Executivo federal? De quem é a responsabilidade por uma decisão de investimento, no mínimo, tão peculiar – uma ONG que atua apenas no Rio de Janeiro e no Amapá recebe quase o dobro de recursos em comparação com outras entidades de atuação nacional?

O orçamento secreto não é mero detalhe contábil. Trata-se de exemplo paradigmático da perigosa combinação entre falta de publicidade e falta de responsabilidade, produzindo gastos públicos arbitrários, sem base em critérios técnicos e racionais. Como a experiência mostra, tal sistemática é campo fértil para as várias modalidades de apropriação do público para interesses privados.

Não é simples aspecto burocrático, assim como também não é obra do acaso. O orçamento secreto é de grande utilidade para alguns: quem indica fica com o bônus eleitoral, quem gasta mal fica isento de responsabilidade. Mas é também, não se pode esquecer, de enorme perversidade para a maioria da população. A fome, a pobreza, a desigualdade social e a insuficiência de tantos serviços públicos não são casuais. O mau uso do dinheiro público, sem critério e sem transparência, tem consequências.

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