Com as eleições de 2022 logo ali, em 2 de outubro, o País terá a chance de reavaliar mais uma vez as suas escolhas e de redefinir – ou não – a rota seguida nos últimos anos. Será também uma oportunidade de decidir se o papel de timoneiro deverá caber novamente ao presidente Jair Bolsonaro, provável candidato à reeleição, ou se é melhor apeá-lo do cargo, democraticamente, e eleger um concorrente para substituí-lo.
Embora o pleito envolva a escolha de 27 governadores, 27 senadores, 513 deputados federais e mais de mil deputados estaduais, é na Presidência que as atenções se concentram, não só pelo caráter nacional da disputa como também pelo papel de protagonista desempenhado pelo presidente da República, no regime presidencialista adotado pela Constituição de 1988.
Mesmo que ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) atribuam à Corte o papel de Poder Moderador da República, sem qualquer amparo constitucional, e que o Congresso tenha adquirido uma força crescente nas últimas legislaturas, tornando a eleição dos parlamentares decisiva para o futuro do País, o presidente ainda tem a caneta na mão – e isso continua a ter um peso considerável no sistema político brasileiro.
Apesar de o termo “presidencialismo de coalizão”, cunhado pelo sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, ter uma conotação negativa, por sugerir uma perda indevida de poder do presidente para o Congresso, a construção de uma base parlamentar para aprovação de matérias de interesse do Executivo deve ser vista, segundo alguns analistas, como um sinal de maturidade democrática.
“No multipartidarismo fragmentado como o nosso, o presidencialismo tem de ser ‘de coalizão’ ou não é democrático”, afirma o também cientista político e sociólogo Antonio Lavareda. “Quando a gente fala em alianças, está metaforicamente remetendo a uma prática social que todos nós conhecemos, que são os casamentos. Há casamentos por interesse pecuniário, por imposição familiar, por ditames religiosos e por amor, que são considerados os mais valiosos contemporaneamente. É a mesma coisa nas alianças, ou seja, nos casamentos e noivados partidários.”
AMEAÇAS
Em meio à polarização política do País, uma parcela da sociedade teme que os pendores autoritários de Bolsonaro, realçados em supostas ameaças às instituições e em declarações relacionadas a uma possível resistência à entrega do poder, em caso de derrota nas urnas, possam colocar em risco, de alguma forma, o processo eleitoral. Teme-se também que, se o presidente vencer o pleito, a própria democracia seja comprometida.
“Há uma percepção de que esta eleição vai decidir a sorte da Nova República, de que, se o presidente Bolsonaro for reeleito, aumentaria muito a chance de uma ruptura institucional mais adiante ou de se dar passos avançados para a construção de uma democracia iliberal”, diz Lavareda. “Hoje, como sabemos, não é mais necessário haver rupturas, com aquele coup d’etat clássico, para isso acontecer. Esses passos podem ser dados através do acúmulo de forças no Congresso ou no Judiciário ou em ambos, como ocorreu em outros países.”
O fato, porém, é que o Brasil chega em 2022 à nona eleição presidencial seguida, um recorde desde a Revolução de 1930, há quase um século, com a democracia mostrando uma resiliência que se sobrepôs até agora a qualquer bravata totalitária.
“Acredito que os riscos estão sendo superdimensionados”, afirma o cientista político Christopher Garman, diretor executivo para as Américas da Eurasia, uma consultoria americana voltada à avaliação de riscos políticos. “Se a gente fizer um balanço do que falaram contra o Bolsonaro em 2021, vamos ver que muita coisa não tinha base real”, diz o cientista político e comentarista Fernando Schüler, também professor do Insper, uma escola de negócios, direito e engenharia de São Paulo. “Disseram, por exemplo, que teria havido uma tentativa de golpe na manifestação de 7 de setembro e que haveria uma invasão do STF e do Congresso. Era pura fantasia, um exercício do que o (escritor italiano) Umberto Eco chamaria de ‘irrealidade’. Agora, pergunta se dois, três dias depois alguém disse ‘olha, desculpe, nós nos enganamos’. É claro que não.”
O que é possível afirmar com segurança é que há um risco concreto de que a campanha seja uma das mais agressivas de que se tem notícia e possa até descambar para a violência. “Tudo indica que teremos a eleição mais sanguinolenta desde 1989”, diz o historiador e comentarista político Marco Antonio Villa, recorrendo a um termo popularizado pelo personagem Sinhozinho Malta, desempenhado pelo ator Lima Duarte, na novela Roque Santeiro, em meados dos anos 1980. “Não acredito que as eleições de 2022 vão se dar num clima ameno ou muito civilizado”, afirma Lavareda. “Nós vamos ter disputas ásperas, duras. Vamos ter os segmentos políticos mobilizados, se enfrentando com contundência, com virulência.”
Não vamos nos iludir. Numa campanha que promete se desenrolar em altíssima voltagem, vai ter muito jogo sujo, fake news, divulgação de pesquisas feitas sob encomenda pelos candidatos e insultos para todos os lados – nos palanques, no horário eleitoral e nas redes sociais – mesmo com a posição vigilante da Justiça Eleitoral. “O meu temor é que o processo eleitoral vire uma guerra”, diz Villa.
TERCEIRA VIA
Oficialmente, a campanha só começa em 16 de agosto, com o término do prazo para registro das candidaturas na Justiça Eleitoral, mas os principais candidatos já estão praticamente definidos e o debate já está nas ruas, dominando as conversas nos bastidores de Brasília, nas rodas de empresários, nos sindicatos, na academia e até nas mesas de bar, em meio ao recrudescimento da pandemia, que teima em postergar o seu fim.
Hoje, a grande questão que está em pauta e que deverá perdurar ao longo da campanha é se a disputa será mesmo polarizada em Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva, o eterno candidato do PT à Presidência, como apontam as pesquisas, ou se algum dos pré-candidatos da chamada “terceira via” vai ganhar corpo e se habilitar a disputar o segundo turno.
Embora as chances de um nome da terceira via conseguir quebrar a polarização Bolsonaro/Lula pareçam remotas no momento, quem apresenta o maior potencial de crescimento na preferência popular, de acordo com as pesquisas, é o ex-juiz e ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, que se filiou ao Podemos no início de novembro.
Para chegar lá, Moro terá de conquistar votos nas fileiras de Bolsonaro, que mantém um contingente de apoiadores fiéis, e atrair o apoio de pré-candidatos menos cotados da terceira via, caso confirme a sua liderança entre os candidatos do grupo, como o governador paulista João Doria, do PSDB, o cientista político Luiz Felipe d’Avila, do Novo, e os senadores Rodrigo Pacheco, do PSD, e Simone Tebet, do MDB. O único pré-candidato da terceira via que, provavelmente, não deverá nem discutir uma eventual aliança com o ex-juiz da Lava Jato, se ele se mantiver na frente entre os postulantes da turma, é o ex-governador do Ceará e ex-ministro Ciro Gomes, seu desafeto, do PDT.
‘PARTIDO LILÁS’
Ciente de que o centro pode ser o fiel da balança, como já aconteceu em outras eleições, inclusive na de 2018, Lula costura uma aliança considerada improvável até pouco tempo atrás com o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, que deixou o PSDB e deverá se filiar ao PSB. “O Lula vai tentar se mostrar o mais confiável possível”, afirma Villa. “A tendência é Lula segurar seus radicais, vamos chamar assim, e buscar alianças que lhe possibilitem até vencer as eleições no primeiro turno, que é o sonho dele.”
Com a vitória de Doria nas prévias tucanas, a ala histórica do partido, composta pelo ex-presidente Fernando Henrique, pelos senadores José Serra e Tasso Jereissati e de certa forma pelo próprio Alckmin, que não se identificam com o governador paulista, voltou a alimentar a sonho de unir as duas vertentes da social-democracia brasileira, representadas por eles mesmos e pelo PT. A proposta de união das duas correntes chegou a ser ventilada anos atrás e até recebeu informalmente o nome de “Partido Lilás”, mas não avançou na época por resistência de Lula.
Agora, em prol da derrota de Bolsonaro, a quem Doria apoiou em 2018, os tucanos históricos, que também não nutrem simpatia por Moro, parecem dispostos a deixar para trás as divergências do passado com o PT, carregando junto parte da ala liberal do PSDB, que inclui alguns economistas que participaram dos governos de FHC. Nos bastidores, comenta-se até, num exercício de futurologia, que o acordo da ala histórica do tucanato com Lula, simbolizado pelo aperto de mão de FHC com o líder petista num almoço realizado em maio, em São Paulo, prevê a entrega do Ministério da Economia a um economista ligado ao grupo.
Bolsonaro, por sua vez, procura atrair o apoio de forças de centro-direita à sua candidatura por meio de alianças com partidos tradicionais, que fazem parte do Centrão, como o PP, do deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, e o PL, do ex-deputado Valdemar Costa Neto, ao qual ele se filiou há cerca de um mês. “O que fez o Bolsonaro ganhar em 2018 não foi o bolsonarismo. Foi o centro”, diz o cientista político Lucas de Aragão, da Arko Advice, uma consultoria de Brasília. “O bolsonarismo o colocou em pé, deu a ele visibilidade. Talvez possa até tê-lo colocado no segundo turno. Mas a vitória veio com o apoio do centro.”
‘ELEITOR RACIONAL’
Diante do atual cenário político, econômico e social, marcado pela combinação indigesta de estagnação da economia com repique da inflação, juros em alta, furo no teto de gastos, desemprego elevado, renda em queda e aumento da desigualdade, há uma expectativa, alimentada por setores da elite econômica e intelectual, de que a campanha deveria se concentrar no debate de propostas efetivas para o País, para o eleitor poder fazer a sua escolha de forma consciente e fundamentada.
“Eu tenho insistido que os partidos e os candidatos precisam apresentar as suas propostas para que a sociedade possa escolher”, afirma o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura, em linha com a aspiração do grupo. “O que acho mais importante para o Brasil é que nós precisamos de um projeto que diga que estamos no ponto A e queremos chegar no ponto B, para mobilizar a população em torno de um programa.”
Outros analistas ouvidos pelo Estadão, no entanto, dizem ser improvável que isso aconteça, elevando o risco de a eleição ser decidida outra vez com base em fatores de menor relevância, que pouco ou nada têm a ver com o que o eleito fará no governo. “No processo eleitoral de 2022, as grandes questões nacionais não devem ser o centro das atenções. As eleições vão ter um nível de discussão muito primário, em que as ideias e os projetos vão ficar em segundo plano”, afirma Villa. “Isso vai ser muito ruim para o País, porque vamos perder uma ocasião fantástica para discutir os problemas e conhecer as soluções apontadas para eles pelos diferentes candidatos.”
A percepção de Fernando Schüler é semelhante. Para reforçar a sua visão, Schüler cita o livro The Myth of The Rational Voter (O mito do eleitor racional), do cientista político americano Bryan Caplan, no qual o autor afirma que a ideia de que o eleitor médio está disposto a debater programas de governo não passa de wishful thinking (pensamento positivo).
“No momento das eleições, a complexidade das propostas é aplainada e substituída por grandes narrativas que competem entre si. No fim, uma delas se torna hegemônica e ganha as eleições”, diz. “Na democracia eleitoral, não há uma conexão entre as questões que certa camada mais intelectualizada da sociedade considera relevantes para o País e a agenda de uma campanha de massa.”
PACIFICAÇÃO
De qualquer forma, independentemente de quem ganhar a disputa presidencial deste ano, a expectativa é de que, em 2023, ao tomar posse, o vencedor busque desde o princípio o diálogo com as diferentes forças políticas, para que o País possa encontrar a pacificação política e retomar, enfim, o desenvolvimento sustentável, que é a base para a prosperidade geral e a melhoria dos serviços prestados à população, como educação, saúde e segurança.
“Goste-se ou não, o Brasil é um país multipolarizado na questão da influência. Ninguém manda no Brasil sozinho. Muita gente manda no Brasil”, diz Lucas de Aragão. “Talvez em função da intensa polarização dos últimos anos, os principais candidatos dão sinais de que estão dispostos a construir o diálogo com forças que pensam diferente deles, porque se isso não acontecer a agenda não vai avançar.”
Para Antonio Lavareda, investir na conciliação no pós-eleições será fundamental para que o Brasil possa realizar as suas potencialidades. “Nós temos de nutrir a esperança de que, passadas as eleições, as principais forças políticas, as que serão governo e as que serão oposição, tenham condições de desenvolver um patamar mínimo de diálogo para enfrentar os problemas dramáticos que se colocam para o País”, afirma. “É um exercício difícil, mas não é complicado de imaginar.” É o mínimo que se pode esperar dos mandatários que vão ditar novos rumos para o Brasil.
No Estadão
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