quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Muito dinheiro para os ‘bem atendidos’ (Editorial do Estadão)



Parlamentares são ‘bem atendidos’ por Bolsonaro para que ele siga no cargo fingindo que governa o País sem ser incomodado

A entrevista que o presidente Jair Bolsonaro concedeu à Rádio Jovem Pan na terça-feira passada serviu para, mais uma vez, evidenciar o seu despudor em afrontar os princípios republicanos mais comezinhos e indicar uma das razões, talvez a principal, pelas quais alguém tão despreparado como ele – administrativa, intelectual e moralmente – siga inabalável no exercício da Presidência da República, a despeito de todos os crimes de responsabilidade que cometeu, descritos em mais de uma centena de pedidos de impeachment, e de todos os males que vem infligindo ao País desde que tomou posse.

Sob seu governo, avaliou Bolsonaro, o Congresso está “muito bem atendido”. Primeiro, é preciso reconhecer que o presidente não mentiu. Aí está o volume recorde de liberação de emendas parlamentares ao longo desses três anos de mandato a comprovar a afirmação, especialmente as emendas do relator-geral do Orçamento, tecnicamente conhecidas como RP-9. No entanto, é preciso deixar claro o que Bolsonaro entende por “muito bem atendido” e, principalmente, em que bases se dá esse “atendimento”.

“Hoje em dia, todos estão ganhando”, afirmou o presidente à rádio, em referência aos deputados e senadores. “Além das emendas impositivas, por volta de R$ 15 bilhões por ano, tem uma outra forma de conseguir recurso, que é a RP-9. E só em RP-9”, prosseguiu Bolsonaro, sem manifestar qualquer sinal de constrangimento, “os parlamentares têm quase o triplo de recursos do Ministério da Infraestrutura, do (ministro) Tarcísio (Gomes de Freitas). Então, o Parlamento está muito bem atendido conosco.”

É muito dinheiro, mas não é verdade que “todos estão ganhando”. A liberação de emendas RP-9 contempla primordialmente os parlamentares que compõem a base de apoio ao presidente no Congresso, como revelou o Estado em uma série de reportagens que, desde maio do ano passado, tornaram público o chamado “orçamento secreto”. A distribuição dessa bilionária soma de recursos públicos por meio de emendas RP-9 é feita sem levar em consideração critérios técnicos, sem transparência e, sobretudo, sem equidade entre os congressistas. Na prática, o governo dividiu os parlamentares em dois grupos: os de “primeira classe”, que apoiam o governo, e o resto.

Em português cristalino, “orçamento secreto” é compra de votos no Congresso. Não sem razão, a prática espúria “estarreceu” ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) e levou a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), a suspender, em um primeiro momento, o pagamento das emendas RP-9, classificadas por ela como um instrumento que “se distancia dos ideais republicanos” e que é operado “sob o signo do mistério”. Contudo, pouco tempo após manifestar “perplexidade” diante do pagamento das emendas RP-9, a ministra liberou a execução dos repasses a pedido dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ambos prometeram à ministra dar transparência aos acordos que viabilizam o pagamento das emendas, como se não estivessem obrigados pela Constituição a fazê-lo. Mas, até agora, não honraram a palavra empenhada.

A entrevista de Bolsonaro foi uma aula de desfaçatez. Mas ele não está sozinho na subversão dos “ideais republicanos” mencionados pela ministra Rosa Weber. Há neste Congresso “muito bem atendido” quem se disponha a se apropriar de recursos do Orçamento para satisfazer interesses eleitorais ou financeiros muito particulares. Não se sabe quais exatamente por não haver transparência em relação às transações. Se são legais e republicanas, por que o sigilo? A dúvida singela, não respondida até hoje, abre espaço para dúvidas muito razoáveis sobre a higidez de todo o processo que cerca as emendas de relator-geral.

Malgrado ser o presidente que mais liberou emendas parlamentares desde 2003, Bolsonaro foi o que menos conseguiu aprovar projetos de sua iniciativa no Congresso. É evidente que o “atendimento” prestado por Bolsonaro a um grupo de parlamentares – e não ao Congresso – se presta, fundamentalmente, a garantir sua sustentação política no cargo para que ele siga fingindo que governa o Brasil sem ser incomodado.

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