sábado, 22 de janeiro de 2022

'Bolsonaro quer sangrar as contas públicas para ganhar votos' (Editorial do Estadão)



Brincando com a Constituição


A destruição dos pilares da Constituição certamente é um dos objetivos do eterno candidato à Presidência Jair Bolsonaro. Há três anos, o País espera que ele assuma as funções de quem chega ao mais alto posto da República e comece, de fato, a governar. O capitão da reserva, porém, insiste em atuar como um vereador que chegou ao cargo por acidente e quer se manter nele a qualquer custo. O preço dos combustíveis, que afeta a maioria dos eleitores, é uma de suas obsessões. Para reduzi-lo à força, a despeito do comprovado fracasso de tentativas anteriores, a ideia genial mais recente é mexer na Constituição. A apoiadores nas redes sociais, Bolsonaro anunciou que negocia com o Congresso zerar as alíquotas de PIS e Cofins sobre gasolina, diesel, etanol e energia para dar um “alívio” aos consumidores.

O custo dessa medida eleitoreira seria de ao menos R$ 57 bilhões para os cofres públicos, quase o dobro dos R$ 30,1 bilhões destinados ao Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb), valor que a União enviará a Estados e municípios neste ano para financiar a educação. A redução no preço dos combustíveis seria pífia, de menos de R$ 0,20 por litro. Na conta de luz, os tributos federais não chegam a 5% na fatura. Um presidente sério e comprometido com o governo jamais cogitaria abrir mão de uma arrecadação desse vulto para conceder um benefício de centavos à população. Mas esse cálculo jamais entrará na planilha de Bolsonaro, na qual a única conta que importa é a dos votos na urna.

Mudar as alíquotas de tributos federais é algo perfeitamente possível de ser feito por lei ou, em alguns casos, decreto. Mas há uma condição: é preciso elevar algum outro imposto para compensar a perda de arrecadação decorrente desse tipo de medida. Esse talvez seja o principal pilar da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), cujo descumprimento implica crime de responsabilidade e, no limite, pode resultar até em impeachment. Isso não representa um empecilho ao modus operandi bolsonarista. Basta driblar a lei inventando uma proposta de emenda à Constituição (PEC). Técnicos da área econômica seriam contrários à ideia, mas, segundo o Estadão, o claudicante ministro da Economia, Paulo Guedes, já deu sinais de que não será um obstáculo, desde que o prometido reajuste dos servidores seja cancelado e o fundo de amortização de preços dos combustíveis não seja criado. É provável que o desmoralizado Guedes perca nos três casos.

A causa da disparada dos combustíveis e da energia é outra. Além da subida do petróleo, que já pressiona os itens no mundo todo, há o efeito da enorme desvalorização do câmbio, causada pela instabilidade gerada pelo próprio governo. Há ainda um mal disfarçado objetivo embutido na PEC: constranger os Estados a reduzir as alíquotas de ICMS sobre os dois itens à custa do esfacelamento da educação, da saúde e da segurança pública. Pela lógica bolsonarista, se o texto passar no Congresso e os Estados não adotarem as medidas, serão os vilões. Se a PEC não for aprovada, o bolsonarismo investirá na vitimização – a ideia segundo a qual o “sistema” não deixa o presidente governar.

As medidas anunciadas por Bolsonaro visam apenas a obter o mínimo de popularidade para não ser derrotado nas eleições já no primeiro turno. Nessa saga em que tudo é válido, a estratégia é transformar em inimigo quem ainda se importa com o País. Se tiver apoio da maioria dos deputados e senadores, a tal PEC elevará o déficit primário para R$ 190 bilhões. Vencidos por um misto de ignorância e prepotência, não sobrou ninguém que tenha a coragem de enfrentar o presidente e dizer que imposto não causa aumento de preços, apenas compõe o valor final de cada produto. Tampouco há quem queira defender a maltratada Constituição de tanta instabilidade. Já foram 113 emendas constitucionais promulgadas desde 1988, das quais 15 sob a administração atual – e estamos apenas em janeiro de 2022. Não se deve ignorar a leviandade e a perenidade com que essas mudanças são aprovadas, legado que sobreviverá ao fim do desgoverno.

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