quarta-feira, 6 de outubro de 2021

O ministro e a offshore: contestação da nota divulgada por defesa de Guedes



Ticiano Figueiredo e Pedro Ivo Velloso, advogados de Paulo Guedes, ministro da Fazenda, divulgaram ontem uma nota à imprensa. Até onde a dupla busca fazer a defesa técnica de Guedes, a coisa vai muito bem, ainda que eu discorde da argumentação. Quando o texto resolve entrar no terreno da política, aí derrapa sem muito estilo, fazendo jus à conhecida agressividade do cliente quando contestado. Segue a íntegra em vermelho. Comento em azul.

*NOTA À IMPRENSA*

A defesa do ministro Paulo Guedes irá protocolar, de forma voluntária, petição à PGR e ao STF esclarecendo de forma definitiva que o ministro jamais atuou ou se posicionou de forma a colidir interesses públicos com privados.

A "colisão" entre o interesse público e o privado, no caso, não está no "querer", mas na natureza dos eventos. O ministro da Economia é o proprietário de uma offshore, fato até então ignorado pela população brasileira.

As escolhas que faz um ministro da Economia interferem na valorização ou na desvalorização daquele ativo, que consiste, fundamentalmente, na remessa de dólares — feita, segundo consta, de acordo com as regras do jogo quando ainda não ocupava cargo nenhum.

Ocorre que o Código de Conduta dos Servidores Federais e a Lei 12.813 — que são explícitos ao vedar esse tipo de negócio a alguém que exerça tal função — são anteriores à aceitação do cargo.

A colisão está nos fatos, ainda que não estivesse na intenção do agora ministro, que ingênuo não é. Guedes tomou a decisão consciente, fruto da vontade, quando aceitou o cargo e manteve ativa a offshore. Teve a chance de internalizar o dinheiro e não o fez.

Os esclarecimentos "voluntários", note-se, serão feitos depois de o ministro ter sido convocado pela Câmara e convidado pelo Senado a prestar esclarecimentos. Também a PGR abriu uma apuração preliminar.

Com relação a empresa Dreadnoughts, os documentos que serão protocolados deixam claro que o ministro desde dezembro de 2018 se afastou da sua gestão, não tendo qualquer participação ou interferência nas decisões de investimento da companhia.
É melhor, em sendo verdade, que o ministro não tenha nenhuma interferência na gestão de um patrimônio bastante respeitável que está numa offshore. Mas isso não muda o Código de Conduta nem a Lei 12.813. Obrigo-me a lembrar, de novo, o que dizem, respectivamente:

Parágrafo 1º do Artigo 5º do Código:
"É vedado o investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função, inclusive investimentos de renda variável ou em commodities, contratos futuros e moedas para fim especulativo, excetuadas aplicações em modalidades de investimento que a CEP [Comissão de Ética Pública] venha a especificar."

A Lei 12.813 veda ao servidor, nos Incisos II e III do Artigo 5º:
II - exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe;

III - exercer, direta ou indiretamente, atividade que em razão da sua natureza seja incompatível com as atribuições do cargo ou emprego, considerando-se como tal, inclusive, a atividade desenvolvida em áreas ou matérias correlatas.

Se Guedes fosse ministro, sei lá, da Infraestrutura ou do Educação, é provável que o fato não causasse tanta estupefação. Não importa quem gerencie aquele patrimônio, o fato é que sua valorização, em reais, é também desdobramento de decisões tomadas pelo ministro.

A defesa certamente já chamou a atenção de Guedes para o fato de que o Código e a Lei QUE VEDAM NÃO LIBERAM. Não estou fazendo graça nem jogo de palavras. Inexiste, por exemplo, uma exceção para a posse de offshore desde que não seja administrada pelo agente público.

Sim, o Artigo 8º da Lei define, no seu Inciso V, que "compete à Comissão de Ética Pública, instituída no âmbito do Poder Executivo federal, e à Controladoria-Geral da União, conforme o caso
(...)
V - autorizar o ocupante de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal a exercer atividade privada, quando verificada a inexistência de conflito de interesses ou sua irrelevância".

A Comissão de Ética Pública e a CGU podem até ter autorizado Paulo Guedes a continuar como dono de uma offshore, mesmo sendo ministro da Economia. A propósito: houve essa autorização explícita? Se o fizeram, contrariaram o que dispõe a lei que define suas respectivas competências no caso e ignoraram o Código de Conduta.

Digam-me cá: de onde a Comissão de Ética e a CGU teriam extraído a autoridade e competência para definir que existe compatibilidade entre a titularidade do Ministério da Economia e a propriedade de uma offshore?

Da mesma forma, os documentos demonstram que não houve qualquer remessa ou retirada de valores para o exterior da companhia mencionada, desde quando Paulo Guedes assumiu o cargo de ministro da Economia, sendo certo que este jamais se beneficiou no âmbito privado de qualquer política econômica brasileira.
De novo, obrigo-me a lembrar que tal benefício se dá pela natureza das coisas. A incompatibilidade entre uma offshore e um ministro da Economia -- ou presidente do Banco Central -- é congênita. Não é uma questão subjetiva.

Respondam os doutores, já que assinaram a nota: "o valor ou cotação do investimento [de Guedes]" é ou não "afetado por decisão ou política governamental"? A resposta chega a ser aborrecidamente óbvia.

Reitera-se que toda a documentação e informação pessoal do ministro foi enviada à Comissão de Ética Pública e demais órgãos competentes, no início do mandato, os quais jamais viram qualquer conflito com o exercício do cargo.
Aqui eu aplaudo a técnica dos doutores, né?, porque falam os advogados de Paulo Guedes, não os prosélitos de uma causa. É o momento em que a defesa abre uma janela para a possibilidade de a argumentação não colar. E se não colar?

Os doutores estão dizendo: aí cumpre responsabilizar a Comissão de Ética Pública e os "demais órgãos competentes". Quais órgãos, além da CGU?

A síntese do parágrafo é esta: "caso se chegue à conclusão de que houve erro, este não é do nosso cliente."

Jamais vou criticar um advogado por fazer corretamente o seu trabalho.

Mais uma vez, criam-se ilações e mentiras, a partir da violação de informações fiscais sigilosas de veículo de investimento legal e declarado, com o único objetivo de criar um factóide político. E para espancar (sic) qualquer dúvida sobre a atuação legal e ética em sua vida pública e privada, Paulo Guedes juntará todas as informações necessárias para demonstrar a licitude e a conformidade de suas atividades com o Código de Conduta da Administração Federal e da Lei de Conflitos de Interesses. O ministro sempre se colocou à disposição das autoridades públicas e do Congresso Nacional no exercício de sua função pública e permanece à disposição.
Ticiano Figueiredo e Pedro Ivo Velloso, advogados do ministro Paulo Guedes
Não crítico o acerto, por óbvio, mas jamais deixo passar um erro. Terá o trecho acima sido escrito por Guedes, de próprio punho? Ele sempre é muito agressivo quando contraditado. Não há factoide nenhum!

Os Pandora Papers não têm Guedes ou Roberto Campos Neto como alvos. Infelizmente, eles apareceram na companhia de gente não muito recomendável. E, sendo quem são, brilham quase como exceções: há na lista pilantras e ditadores, por exemplo, mas são poucos os czares da área econômica em seus respectivos países. Até agora, além de Guedes e Campos Neto, contam-se os ministros da Economia (ou congênere) de Gana, Paquistão e Cazaquistão. Nada de que a dupla brasileira deva se orgulhar em matéria de companhia.

É claro que estamos todos curiosos para saber a que releitura Guedes pretende submeter o código e a lei que o impedem de ter offshore, seja seu dirigente ou não.

Factoide, aí sim, é tentar transformar numa espécie de conspiração aquilo que apenas traduz a realidade dos fatos. Ninguém abre uma offshore para que o público fique sabendo, não é mesmo? Mas agora sabe. E o jornalismo tem o dever de informar porque se trata de matéria de interesse público.

Ademais, sempre resta ao ministro a escolha de internalizar esse dinheiro e submetê-lo às oscilações a que estão sujeitos todos os brasileiros — ou uma parcela deles ao menos. Um contingente enorme de nativos vê o dólar nas nuvens se transformar em inflação de alimentos e arrancar comida do seu prato. O quilo do osso para sopão já está custando R$ 4.

O dólar valorizou ontem R$ 0,03. Quem quer que administre a offshore de Guedes viu o ministro da Economia no Brasil ficar R$ 285 mil mais rico em 24 horas. O valor corresponde a 158 meses do salário médio — ESTOU FALANDO DO MÉDIO — de contratação de trabalhadores em agosto: R$ 1.792,07. Mais de 13 anos.

Guedes não é ministro da Infraestrutura. É ministro da Economia. Ainda que tudo fosse legal e ético, seria imoral.

Que a defesa faça o seu trabalho. Mas é preciso tomar um pouquinho mais de cuidado se quiser fazer um debate de natureza política.

Por Reinaldo Azevedo

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