No momento em que o aumento da conta de luz corrói a renda do cidadão, vem à tona uma auditoria para revelar que o consumidor pagou, entre 2017 e 2020, mais de R$ 5,2 bilhões em sua conta de luz por uma série de erros técnicos cometidos pelo governo e a cúpula do setor elétrico, em projeções de produção de energia. Isso representou um impacto médio de 5% no valor das contas.
O Estadão teve acesso a uma auditoria concluída em setembro pela Controladoria-Geral da União (CGU), que analisou como a falta de chuvas impacta o setor. O órgão conclui que boa parte dos custos que dragam a renda da população decorre de fatores “sem qualquer relação com o índice de precipitações” das chuvas. A auditoria mostra que R$ 2,22 bilhões bancaram custos com “frustração de energia” hidrelétrica, isso porque a capacidade usada como referência pelo governo para abastecer o País está “desatualizada”, ou seja, as usinas já não produzem tudo aquilo que dizem. Coube ao cidadão bancar essa diferença.
Outro “erro de cálculo” diz respeito à programação planejada para a usina de Belo Monte, em sua fase de motorização. A produção esperada não se confirmou e, segundo a CGU, foi preciso comprar essa energia de outras usinas, ao custo de mais R$ 2,3 bilhões.
Amazônia
Outros R$ 693 milhões foram pagos devido ao atraso em linhas de transmissão, o que fez com que usinas da Amazônia liberassem água sem produzir energia, por não ter como distribuir. “É necessária a rediscussão da alocação desses custos, especialmente aqueles relacionados a questões alheias ao risco hidrológico, de modo que não sejam os consumidores de energia elétrica os únicos a suportarem os efeitos financeiros”, diz a CGU.
Hidrelétricas não revisam a capacidade
Com tolerância do governo federal e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), hidrelétricas de todo o País descumprem a lei e deixam de revisar a capacidade de geração de suas estruturas, o que tem resultado em frustração de produção e, assim, gerado custos bilionários ao consumidor de energia.
A regra é conhecida. Desde 1998, um decreto (2.655) prevê que, a cada cinco anos, toda usina hidrelétrica deve revisar a sua “energia assegurada”. Esse cálculo, de competência da EPE e vital para o setor elétrico, permite a realização de simulações que apontam a contribuição de cada gerador e a máxima quantidade de energia possível de oferecer.
Ano após ano, as usinas têm perdido capacidade de geração devido a fatores como redução do volume de água, além de equipamentos, que podem ficar defasados. Na prática, as usinas não fazem essa revisão, porque sabem que qualquer redução na garantia física das usinas vai significar perdas financeiras, porque diminui o montante de energia que podem vender, independentemente de quem vá pagar por isso. Não por acaso, as hidrelétricas sempre dificultaram esse pente-fino, tanto que a primeira revisão só ocorreu em 2017, 20 anos após a exigência legal.
Essa falha de empresas e do poder público tem sido acompanhada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), para dar fim ao “descompasso entre a garantia nominal e a real que gera custos vultosos aos consumidores”.
Na auditoria da CGU, os técnicos dizem que há expectativa de que o Ministério de Minas e Energia (MME) revise as garantias físicas das usinas até 2024, com efeitos em 2025, em acordo com o TCU. Isso permitirá uma visão mais clara do que pode ser produzido pelas hidrelétricas, evitando a necessidade de recorrer ao “mercado livre” de compra de energia, mais oneroso.
'Sem transparência'
“Desses fatos, espera-se que não volte a ser adotada política pública baseada em bom desempenho hidrológico pregresso, de forma a evitar custos inicialmente não previstos que porventura recaiam sobre o consumidor cativo e ainda podem gerar impacto fiscal”, afirma a CGU, acrescentando que “grande parte desses custos está sendo transferida para o mercado cativo (consumidor de energia vendida pelas distribuidoras), que estão suportando, sem a devida transparência, custos que deveriam ser compartilhados com todos os atores do setor elétrico”.
A reportagem questionou o governo e o setor. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) declarou ter “certeza de que realiza seu trabalho de forma transparente e responsável” e que coordena o “despacho centralizado das usinas conforme atribuição a ele concedida”. O ONS disse que a geração e temas afins “são mecanismos calculados por outras instituições” e estão “fora das atribuições do operador”.
Após a publicação da reportagem, a EPE declarou que “ainda não teve acesso ao relatório de auditoria da Controladoria-Geral da União” e que, “por desconhecer o teor do documento, a EPE informa que ainda não dispõe dos elementos adequados para se posicionar institucionalmente”.
“Uma vez disponível, a EPE proverá as informações solicitadas, reforçando seu compromisso institucional com a ética e a transparência pública. Por fim, a EPE reitera seu comprometimento com a realização de estudos e pesquisas de alta qualidade visando subsidiar o planejamento energético nacional, conforme competências e atribuições legalmente estabelecidas”, declarou.
O Ministério de Minas e Energia não se pronunciou. A Norte Energia, empresa privada dona de Belo Monte, declarou que “não tem ainda conhecimento do escopo e do relatório conclusivo da referida auditoria”.
A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, agente financeiro do setor, declarou que tem auxiliado a CGU, prestando informações e esclarecimentos, e “reforça que cumpre, nas suas operações, todas as diretrizes estabelecidas na legislação brasileira e nas regulações aplicáveis ao setor”.
Prejuízo bilionário:
R$ 2,22 bi foi o que os consumidores de energia tiveram de pagar, entre 2017 e 2019, para cobrir erros de cálculo de produção de energia e compensações por frustração de geração hidrelétrica
R$ 2,3 bi foi o custo a mais que os consumidores tiveram de pagar devido a uma programação de geração de energia de Belo Monte que não se confirmou, durante a etapa de motorização da usina
R$ 693 mi foi o valor bancado pelos consumidores em decorrência do atraso de linhas de transmissão de energia que não entraram em operação na data planejada, fazendo com que usinas liberassem água sem produzir energia
O que levou o consumidor a pagar mais pela energia
Capacidade:
Cada hidrelétrica possui um volume seguro de energia (capacidade física) de geração que é efetivamente capaz de entregar. Com base nessa informação, o setor elétrico define o que cada usina deve produzir.
Produção compartilhada:
Para equilibrar a produção total do País, quando o volume de uma usina fica abaixo do esperado, outra que tenha gerado mais compensa a primeira. Funciona como um “condomínio”, onde cada um ajuda o outro. É o “Mecanismo de Realocação de Energia”.
Crise hídrica:
Acontece que, desde 2013, por causa da escassez de chuvas, muitas usinas não conseguiram atingir suas médias históricas de geração. Isso abriu um rombo sobre o volume programado – e nem mesmo o “condomínio” fechou as contas do que estava programado.
Compra de energia:
Para garantir a entrega da energia programada e evitar desabastecimento, o setor passou a comprar energia de usinas de outras fontes, que são bem mais caras. Até 2015, essa conta extra era bancada pelas próprias hidrelétricas, mas desde então passou a ser cobrada dos consumidores.
Sem revisão:
Se as hidrelétricas tivessem passado por uma revisão de suas capacidades, certamente esse custo extra seria evitado, porque o setor saberia mais precisamente com que volume de energia hidrelétrica poderia contar, equilibrando essa oferta com outras fontes de energia.
No Estadão
Um comentário:
No Brasil, quanto mais "Regulação" e "Fiscalização", mais corrupção e top top no cidadão!
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