Imaginem se, deixem-me ver, Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato de oposição ao governo, viesse a público para anunciar que vai faltar fertilizante no ano que vem em razão da crise energética da China e que isso vai gerar desabastecimento de alimentos no Brasil... Ah, não seria só o presidente da República a estrilar. Os teóricos da "polarização" que pululam na imprensa — logo será preciso alugar um ginásio para fazer uma convenção — iriam tonitruar: "Vejam aí! Não basta termos um incompetente no poder! O seu antípoda é um catastrofista. Precisamos vencer os populismos de direita e de esquerda"!
Pois acreditem! Quem resolveu botar fogo no parquinho, com a irresponsabilidade e a ligeireza de sempre, foi o próprio... Jair Bolsonaro!
Durante cerimônia do Palácio do Planalto, afirmou, com aquela sintaxe muito característica de quem é incapaz de redigir um parágrafo que faça sentido:
"Eu vou avisar um ano antes, fertilizantes! Por questão de crise energética, a China começa a produzir menos fertilizantes. Já aumentou de preço. Vai aumentar mais e vai faltar. A cada cinco pratos de comida no mundo, um sai do Brasil. Vamos ter problemas de abastecimento ano que vem".
É estupendo! Sim, a China enfrenta escassez de energia; há um declínio na produção de fertilizantes, e o preço está em alta. Mas quem é esse governante que se jacta de tocar o terror discursivo "um ano antes" em vez, então, de anunciar providências? Prestem atenção à dicção. Bolsonaro está a nos dizer pelo silêncio: "Não venham me culpar depois. Não tenho nada com isso".
Desabastecimento? E o que já existe na despensa e na mesa de parte considerável dos brasileiros — de maneira especialmente dolorosa entre os 19 milhões que hoje passam fome no país. Nos supermercados, pode-se comprar de tudo. Mas é preciso ter muito dinheiro. A inflação de alimentos é escandalosa, e os pobres estão comendo a cada dia menos — e pior. Não obstante, o Brasil bateu recordes de safra em 2019 e 2020. No caso, a China comprou boa parte da produção.
Esse arremedo de governo que aí está não pensou uma miserável política pública para levar comida mais barata à mesa dos pobres. Bolsonaro se indigna com o preço da gasolina e do diesel, mas não dá bola para o da carne, o do arroz, o do feijão...
E ele continuou com o seu terror antecipatório:
"Como deve faltar fertilizante, por falta de oferta no mercado, ele [o produtor rural] vai plantar menos. Se vai plantar menos, vai colher menos. Menos oferta, a procura igual ou um pouquinho maior, [tem] aumento de preço. Isso é para o mundo todo".
Algum dos seus amigos do agrorreacionarismo resolveu ser o seu Professor Raimundo do desabastecimento, e ele repetiu, diligente, a lição aprendida, como se fosse um qualquer, a quem não competisse, ao menos, tentar uma resposta. Não fazer nada e apenas assistir aos acontecimentos! Essa também foi a sua escolha no enfrentamento à covid-19, lembram-se? No dia 27 de março do ano passado, em conversa com José Luiz Datena, afirmou:
"O brasileiro quer trabalhar. Esse negócio de confinamento aí tem que acabar. Temos que voltar às nossas rotinas. Deixem os pais, os velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar. Algumas mortes terão, mas acontece, paciência".
Contavam-se, então, 3.477 infectados, com 93 mortos. Nesta sexta, o país ultrapassará a marca dos 600 mil cadáveres: 599.865 ontem, com 21532.210 de infectados notificados. E todos conhecemos os empecilhos criados pelo próprio governo para a compra de vacinas, revelados pela CPI, e a constante sabotagem aos métodos de prevenção.
"Algumas mortes acontecem. Paciência!"
"Algumas pessoas passam fome. Paciência!"
"Alguns incêndios ocorrem. Paciência!"
"Algumas pessoas ficam desempregadas. Paciência!"
"Haverá desabastecimento no ano que vem. Paciência!"
Bolsonaro é o fatalista trágico da própria ignorância. Ainda que esse cenário de desabastecimento fosse fatal — e não é, ainda que as dificuldades existam —, a um governante compete, então, tomar medidas de caráter preventivo e, no momento adequado, conversar com a população.
Mas Bolsonaro prefere, como se vê, incentivar as pessoas que dispõem de recursos a fazer um estoque de alimentos.
Sou um tanto injusto quando afirmo que Bolsonaro nada fez. Ele tomou, sim, uma providência. Deixemos que ele mesmo conte:
"Pedi agora a uma pessoa nossa que trabalha nos Estados Unidos, no Itamaraty, [para] ir nos mercados -- bem como alguns embaixadores da Europa também -- [para] mostrar o que está acontecendo. Lá [no exterior], não é apenas inflação, está havendo desabastecimento".
Bolsonaro transformou os embaixadores brasileiros em apontadores de preço nos, como diriam Paulo Coelho e Raul Seixas, "pegue-pagues do mundo".
Bolsonaro ultrapassou, desta feita, os limites da própria idiotia. Nada que ele não possa fazer de novo amanhã.
Por Reinaldo Azevedo
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