A coisa não deixa de ter a sua graça. A quase totalidade da imprensa e dos analistas divide o governo em duas alas: a política e a econômica. É conveniente para o presidente Jair Bolsonaro, como se ele fosse uma espécie de vítima passiva do embate.
Destaque-se: a "ala política" seria aquela que só faz coisas erradas, pensaria apenas em si mesma e defenderia posições que fazem mal ao Brasil. Em contraste, a área econômica seria responsável, empenhada no bem da pátria, advogando, sei lá, uma racionalidade neutra, que se ocuparia da matemática.
A primeira, entende-se, seria chefiada, no governo, pelo ministro Ciro Nogueira (Casa Civil), tendo no Congresso um braço operante: Arthur Lira (PL-AL), presidente da Câmara. Marcharia à frente da segunda, da ala do bem, o ministro Paulo Guedes (Economia). Este, sim, esforçar-se-ia noite e dia por boas coisas, mas tendo de enfrentar aquelas pessoas terríveis da outra banda.
É evidente que não posso concordar com esse juízo pueril, mas que encontra eco na imprensa não é de hoje. No fim das contas, estamos lidando com o velho e conhecido ódio à política, de consequências obviamente trágicas para o país. Não por acaso, eis Sergio Moro prestes a se candidatar à Presidência da República — e, claro!, lá vem ele envolto na aura do "não político". Desnecessário notar à margem que poucas figuras públicas no país foram tão políticas como ele próprio. Até aí, poderia estar tudo bem, já que este articulista não demoniza a política e lastima aqueles que o fazem. Ocorre que ele atuou desse modo quando estava com a toga nos ombros. Voltemos.
MUDANÇA DE CÁLCULO
Vejam o caso em si escandaloso da mudança do modo de calcular a correção de gastos para fingir que o teto segue intocado.
A mutreta está inserida num texto que trata de um outro arranjo também fura-teto, caloteiro e, se me permitem, "pedalante": a PEC dos precatórios. Só pra constar: a "engenharia" do "devo, não nego e talvez não pague nunca" não pertence à área política, não. O truque surgiu no Ministério da Economia mesmo. Tanto é assim que, inicialmente, Guedes pensava até em articular alguma ação em parceria com o Conselho Nacional de Justiça. A tempo, Luiz Fux resolveu se afastar da tentação — até porque Bolsonaro estava empenhado em planejar o seu "Sete de Setembro" golpista.
Inexiste essa contradição entre "área política" e "área econômica". Essa diferença é resultado de um lobby bem-sucedido de Guedes. A figura do ministro traz consigo uma espécie de ameaça: "Depois de mim, o dilúvio". É como se dissesse: "Ah, vocês não gostam do meu trabalho? Acham que as coisas não estão dando certo? Imaginem como poderia ser com um eventual substituto".
Notem que os nomes de mais destaque, exceção feita ao titular, caíram fora do Ministério da Economia. Até outro dia, o próprio ministro vivia metendo o carimbo em alguns colegas um tanto rebeldes à sua orientação: "É um fura-teto!" Desta feita, quando Bolsonaro decidiu que o Bolsa-Família iria para R$ 400 e que o teto seria furado — de novo! —, quem veio a público para justificar a decisão, minimizar o fato e ainda exaltar as virtudes humanitárias do presidente? Ora, o próprio Guedes.
E SE NÃO DER CERTO?
Sim, eu mesmo já afirmei aqui que é um imperativo também ético e moral elevar o valor do benefício do Bolsa Família. Mas é evidente que a decisão também quer ter um alcance eleitoral. Aliás, a parcela dos R$ 400 -- R$ 173 -- que tem vigência só até dezembro de 2022 não deixa dúvidas sobre o que orientou a escolha. Mas e se não der certo?
Será mesmo verdade que o máximo de concessão a estripulias contábeis que faz Paulo Guedes é dar calote nos precatórios e condescender com uma nova fórmula para calcular a correção de gastos? Acho que não, né? E se as pesquisas não derem a resposta que Bolsonaro espera? Não haverá tentações novas? Se houver, fiquem tranquilos: Guedes permanece no cargo e arruma uma nova explicação.
BATALHA PELOS R$ 600
Haverá certamente embates no Congresso em favor da elevação do benefício do Bolsa Família de R$ 400 para R$ 600. E isso dará a Guedes a oportunidade de comparecer ao debate como o homem da responsabilidade fiscal, como se os R$ 400 já não fossem, por si, uma gambiarra. E aí está o problema.
O próprio ministro chegou a pôr em perspectiva o que pareceu ser, então, a seu juízo, a irrelevância de um estouro de R$ 30 bilhões em face de um orçamento de R$ 4,325 trilhões — antes da revisão. De fato, dado o conjunto, o dinheiro parece, e é mesmo, uma merreca: 0,69%.
O programa, com os R$ 400, custará, pelo menos, R$ 85,8 bilhões em 2022, o que corresponde a 1,98% do Orçamento enviado ao Congresso. Uma elevação para R$ 600, pois, implicaria um gasto de R$ 128,7 bilhões: 2,97%.
Por que todas essas contas? Bem, em primeiro lugar, porque foi Guedes a lembrar quão pouco, de fato, o "estouro" representa quando cotejado com o tamanho do Orçamento. Se bem que ele não põe na conta o calote dos precatórios.
Mas, agora, é preciso trazer ao debate quão igualmente pouco fez o governo em favor da racionalidade tributária. Segundo cálculos da Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), o governo federal deixará de arrecadar neste ano R$ 457 bilhões em renúncias fiscais — mais de 5,3 vezes o gasto com o Bolsa Família já bombado pelo estouro do teto e pelo calote dos precatórios. Digamos que a Unafisco exagerasse, e o valor correspondesse à medade...
ENCERRO
Não existem "ala política" e "ala econômica" disputando o coração de Bolsonaro. Existe, isto sim, um governo cujo líder se dedicou, ao longo de quase três anos, a golpismo e negacionismo. Para não cair, ancora-se no Centrão, que é o preço a pagar por jamais ter procurado formar uma maioria consistente no Congresso, buscando implementar, então, o seu suposto reformismo liberal -- aquele que nunca existiu.
Vejo o escarcéu que se faz com o estouro do teto por causa da elevação do benefício do Bolsa Família. Sim, prometeram não furar o limite, e eis aí a gambiarra. Aponte-se. Mas dizem: "Ah, é a ala política..." É? E as iniquidades orçamentarás e tributárias em favor dos "suspeitos (e beneficiados)" de sempre? Não escandalizam ninguém?
Por Reinaldo Azevedo
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