O calendário político já havia transformado Paulo Guedes num pato manco. É conhecido o seu esforço para tentar justificar qualquer coisa. Ele sempre tem uma explicação generalista e inútil para problemas específicos, num esforço de evidenciar que o interlocutor ou crítico estão sempre errados — e ele, é claro!, certo. Mas, como se nota, cascata retórica não faz milagre.
Depois da revelação de que o ministro tem pelo menos US$ 9,5 milhões numa offshore, vem também a desmoralização política. Agora, mais do que nunca, o centrão imporá a agenda que quiser. Os únicos limites da turma serão o próprio Congresso (afinal, é preciso ter votos para aprovar isso e aquilo), o Judiciário e, eventualmente, o tal mercado. Guedes, ele próprio, não conta mais.
Com que autoridade o ministro vai se entregar a digressões políticas, fazer exigências, cobrar sacrifícios? Se continuar à frente da Economia, será em razão de alguma licença que vão lhe conceder, em alguma instância, o Ministério Público e a própria Justiça.
Que fique claro mais uma vez: ter uma offshore não é ilegal se devidamente declarada. Mas é evidente que o Código de Ética da Administração Pública e a lei que trata do conflito de interesses — a 12.813 — vedam essa possibilidade a alguém como Guedes — e, por óbvio, a Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central.
Já tratei do assunto, mas relembro. Estabelece o Parágrafo 1º do Artigo 5º do Código:
"É vedado o investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função, inclusive investimentos de renda variável ou em commodities, contratos futuros e moedas para fim especulativo, excetuadas aplicações em modalidades de investimento que a CEP [Comissão de Ética Pública] venha a especificar."
A Lei 12.813 veda ao servidor, nos Incisos II e III do Artigo 5º:
II - exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe;
III - exercer, direta ou indiretamente, atividade que em razão da sua natureza seja incompatível com as atribuições do cargo ou emprego, considerando-se como tal, inclusive, a atividade desenvolvida em áreas ou matérias correlatas.
O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) denunciou Guedes e Campos Neto à Comissão de Ética Pública. Esta, aliás, se manifestou ontem e afirmou que, por ocasião das respectivas nomeações, os dois se comprometeram a "mitigar" ou "evitar" o conflito de interesses. Pois é... Se a lei está sendo transgredida, e está, que tipo de mitigação é possível?
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), líder da oposição no Senado, entrou com uma notícia-crime no STF contra a dupla. Ele aponta possível conflito de interesses e improbidade administrativa. O relator sorteado no tribunal enviará a questão para a Procuradoria Geral da República. A propósito, falemos da PGR.
ARAS E O MUXOXO
Augusto Aras se manifestou a respeito em nota enviada ao site "Poder 360". A fala saiu meio de viés. Indagado sobre eventual providência, afirmou:
"Trata-se de uma notícia que foi publicada pela imprensa. Com todo respeito à mídia, não podemos fazer investigações com base em notícias. O PGR fará, como de praxe, uma averiguação preliminar. Vamos ouvir algumas pessoas e requisitar documentos. Depois é que vamos fazer um juízo de valor se é necessário pedir a abertura de um inquérito no Supremo Tribunal Federal, que é o foro para quando há ministros de Estado citados. Mas tudo será dentro do devido processo legal. A 1ª pessoa a ser ouvida será o ministro Paulo Guedes, que será oficiado e poderá com tranquilidade enviar todos os esclarecimentos. Podemos também oficiar órgãos de controle. Mas não faremos nenhum juízo de valor antes disso".
Com a devida vênia, fica parecendo desconversa. A informação de que Guedes tem uma offshore, e Campos Neto, quatro não é coisa dessa tal "mídia". É fato. Eles próprios já admitiram. A vedação prevista na Lei 12.813 e no Código de Conduta da Administração Pública é explícita.
A coisa vai ter lá a sua graça. Aras vai avaliar o quê? Se ambos cometeram algum crime previsto no Código Penal? Acho que nada vai encontrar, não é? A restrição está nos dois textos legais citados e, por óbvio, da Lei da Improbidade Administrativa, com ou sem as alterações que o Congresso vier a fazer.
Um monte de rico brasileiro tem offshore. É legal? É, sim. Não vou entrar em minudências. Há até casos em que isso se justifica. No mais das vezes, é só uma forma de fugir à tributação. Pagar imposto, direto ou indireto, no Brasil é um dos direitos universais da pobreza. Basta ver a lista de tiranos e vigaristas que estão entre os mais desenvoltos para constatar que a coisa não cheira bem. Enquanto a legislação for a que temos, estando tudo devidamente declarado, não há contas a prestar.
Mas gente como Guedes e Campos Neto não podem se dar a esse desfrute. Eis aí: o BC está em plena fase de aperto monetário, o que traz consequências para a economia real e para as pessoas que trabalham, produzem e têm seu dinheiro no Brasil. Há uma perda óbvia de legitimidade e de credibilidade da instituição.
AQUELA TAL INDEPENDÊNCIA...
Aprovou-se a independência do Banco Central, considerada constitucional pelo Supremo. Pois é. Um mínimo de rigor republicano impõe que a dita-cuja seja posta agora em perspectiva. Com ou sem as offshores de Campos Neto, já se tratava de uma variante contemporânea do direito divino dos reis. Com elas, então...
O Artigo 6º da Lei Complementar 179 dispõe:
"Art. 6º O Banco Central do Brasil é autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira, pela investidura a termo de seus dirigentes e pela estabilidade durante seus mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei Complementar ou de leis específicas destinadas à sua implementação."
Se o Brasil quiser, não pode afundar o Banco Central, é claro. Mas, se o Banco Central quiser, pode afundar o Brasil. Obviamente, não concordo com essa redação. Na letra da lei, o BC pode mais do que qualquer dos três Poderes. Se o segredo de aborrecer é dizer tudo, que se diga.
A mesma lei dispõe sobre a demissão de diretores do BC, incluindo o presidente. Tanto esse monarca absolutista como os demais diretores, segundo o Artigo 5º, só podem sair a pedido; em caso de enfermidade; se condenados com trânsito em julgado ou em ação de improbidade; se o desempenho for insuficiente.
Nessa última hipótese, o Conselho Monetário Nacional tem de submeter ao presidente da República a sugestão de exoneração, que, por sua vez, tem de ser aprovada pela maioria absoluta do Senado. Nenhum outro cargo é tão seguro no mundo. A não ser o de monarca absolutista. A propósito: Abdullah II, da Jordânia, é um dos desenvoltos donos de offshore.
Guedes e Campos Neto sabem que estão em desacordo com a Lei 12.813, que nada tem de ambígua a respeito. Sabem que também violam o Código de Ética da Administração Federal. E sabem que o fato que veio à luz os enfraquece politicamente. Não que Bolsonaro vá fazê-lo, mas, como se nota, Guedes é demissível "ad nutum" — pela vontade de um só: o presidente da República. Já Campos Neto...
Claro, podemos todos olhar de lado, assoviar e fingir que o ocorrido nada tem a ver com a Lei Complementar que declara que o Banco Central é independente até dos interesses do Brasil. Mesmo quando desmoralizado.
Por Reinaldo Azevedo
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