O país enfrenta a maior estiagem em muitas décadas, e só os tolos descartam um racionamento e o risco de apagão. A inflação empobrece e torna miserável a vida dos pobres, que já vasculham caminhão de ossos no país que se orgulha de ser o maior exportador de alimentos do mundo. No Congresso, o presidente Jair Bolsonaro vai colecionando derrotas e tenta jogar o preço extorsivo do gás de cozinha nas costas dos governadores. As pesquisas eleitorais e as que medem o humor da população com a sua gestão não poderiam ser mais eloquentes.
O discurso público do ogro deu uma amansada depois da carta de rendição do dia 9, embora ele continue a afrontar a lei ao sair país afora numa jornada evidente de campanha eleitoral antecipada, com dinheiro público. A CPI evidencia a cada dia a máquina de morte em que se constituiu a política pública de saúde.
Governantes, claro!, também têm uma vida privada e podem expressar preocupações que calam em público. No passado, muitos se expressavam em cartas e mensagens a familiares, amigos e aliados políticos. Leiam, a propósito, os dois volumes de "Volta ao poder: A Correspondência entre Getúlio Vargas e a Filha Alzira / 1946-1950". No exílio, Juscelino Kubitschek expressava suas preocupações com o país e com o próprio destino em missivas enviadas ao amigo Augusto Frederico Schmidt. Havia grandeza naquilo.
Bolsonaro também escreve. Cartas não. Prefere as redes sociais, o que o "Gabinete do Ódio" faz em seu lugar. Mas tem o seu próprio telefone. E usa o WhatsApp para evidenciar que a agitação intelectual não era privilégio de Getúlio ou Juscelino. Reportagem do Globo revelou, como diria o poeta, os "pélagos profundos" do seu pensamento. Os temas escolhidos, entre os dias 23 e 29, ajudam a entender esse troço que aí está, a que muitos ainda chamam "governo" à falta de um vocábulo que defina a bagunça. As mensagens chegaram a importantes autoridades da República, não apenas a pessoas de seu círculo mais próximo.
Pode não parecer, eu sei, mas há ali um pensador.
FAKE NEWS SOBRE VACINAS
Às 20h30 de terça, usou o aplicativo para espalhar fake news, veiculando um vídeo de uma militante de uma rádio bolsonarista. A mentira pusilânime associa a morte de cinco adolescentes à vacina Pfizer. E Bolsonaro refletiu (segue com os erros de digitação): "Jovens morrendo com a Pfizer. Riscos -- Precisam investigar! Jovens morr3ndo de parada card1aca (sic)". O vídeo que trazia a mentira criminosa tinha uma inscrição: "Bolsonaro tem razão". Nota: dois dos adolescentes citados nem sequer tinham recebido o imunizante.
Obrigado a aposentar o discurso golpista, restaram ao presidente a histeria anticomunista, a pregação antivacina e a homofobia.
PINOCHET
Na quinta-feira da semana passada, postou um vídeo elogioso a Augusto Pinochet, o ditador que ensanguentou o Chile. Tem a marca do deputado estadual Frederico D'Ávila (PSL-SP). E se pode ler a seguinte maravilha a título de legenda para a fala do facínora:
"Quando os chilenos verem (sic) o que é o comunismo, quando entenderem as trapaças, as falácias, como estão enganando, vão se dar conta de que este governo tem razão."
Há um corte, e se colam imagens de protestos recentes no Chile, retornando para Pinochet. E segue a legenda para a fala do ditador:
"Isso nunca foi uma ditadura, senhores. Esta é uma ditabranda (ditadura branda). Mas, se necessário, teremos que apertar a mão, porque temos que salvar primeiro o país e depois olharemos para trás".
HOMOFOBIA
Bolsonaro sem homofobia é como goiabada sem queijo ou Piu Piu sem Frajola. Passou adiante um conteúdo de suposto protesto em favor dos direitos para a comunidade LGBT em que se queimava a Bandeira do Brasil. Aproveitou para atacar Lula: "Essa turma toda quer 'o cara' voltando ao poder". Passou ainda adiante a fala de um músico que diz ter mantido três relações sexuais com homens, embora se considere heterossexual. O presidente decidiu comentar o caso: "Até três vezes pode."
Temos um chefe de Estado que se sente à vontade para ser fiscal do corpo alheio. Notem o tipo de mensagem que ele recebe e passa adiante.
PREGAÇÃO ANTI-CHINA
O ex-presidente Lula é ainda personagem de outro vídeo. Desta feita, com um ataque à China. O petista aparece na parte superior da tela a dizer que aquele país "é um exemplo de desenvolvimento para o mundo". Na parte inferior, supostas imagens da China exibem a venda de carne de cachorro e um adulto que seria professor espancando um estudante. O presidente decidiu dar seu toque pessoal à montagem. Escreveu: "Lula, (sic) corrompeu-se para mentir ao mundo que a China é um 'exemplo'". A coisa saiu assim mesmo, com a vírgula entre o sujeito e o verbo.
Para lembrar: a China é o maior parceiro comercial do Brasil. No ano passado, o país respondeu por 32,4%, ou US$ 67,8 bilhões, do total das nossas exportações: US$ 209,2 bilhões. O Brasil importou daquele país US$ 34,8 bilhões. Vale dizer: também é o maior mercado das compras externas brasileiras. A seus aliados e próximos, o presidente trata os chineses como inimigos.
Nesta quinta, na sessão da CPI, o senador Humberto Costa (PT-PE) fez alusão às mensagens e censurou a militância antivacina de Bolsonaro, com o apelo criminoso a fake news. Renan Calheiros (MDB-AL), relator da Comissão, afirmou:
"As mensagens enviadas por Bolsonaro à sua lista de contatos, disseminando fake news sobre a vacina da Pfizer, constarão no relatório, como também constarão outras postagens e declarações do presidente para desincentivar a vacinação. Bolsonaro será responsabilizado por disseminar fake news e desincentivar a vacinação".
É claro que o presidente "tchutchuca da democracia" é uma falácia. Segue sendo quem é: um golpista, só que agora frustrado.
Eis o cara que governa o Brasil. E que alguns pistoleiros pretendem que lá permaneça.
Por Reinaldo Azevedo
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