Dependendo do resultado, a decisão sobre o foro adequado para julgar crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas em ações de segurança pública pode azedar novamente as relações de Bolsonaro com o Supremo Tribunal Federal. Hoje, soldados que violam a lei quando realizam tarefas de policiais são julgados pela Justiça Militar. Esses julgamentos são historicamente marcados pelo acobertamento e pela impunidade. Há oito anos, em 2013, a Procuradoria-Geral da República pediu na Suprema Corte que os militares passem a ser julgados na Justiça comum. Bolsonaro e os comandantes militares abominam essa ideia.
Esconde-se por trás da encrenca uma sigla muito acionada e ainda bastante desconhecida: GLO, Garantia da Lei e da Ordem. Trata-se de uma permissão constitucional para usar soldados no combate ao crime urbano. O que seria usado apenas em ocasiões excepcionais tornou-se corriqueiro. Nas operações de GLO, quando soldados matam o que os militares chamam de "agente perturbador da ordem", a morte é tratada como mero "dano colateral".
O general Eduardo Villas-Bôas, ex-comandante do Exército, costuma dizer que o julgamento pela Justiça Militar é essencial para evitar a insegurança jurídica. Nessa versão, o Exército tira os jovens de sua família no pressuposto de que serão treinados para atuar como soldados. Acabam sendo destacados, por exemplo, para reprimir o tráfico de drogas num morro do Rio de Janeiro. Não seria justa que, matando um bandido numa troca de tiros, o jovem fosse devolvido a sua família como indiciado pela Justiça comum, sujeito a um júri popular.
Essa lógica se dissolve quando é aplicada a casos como o do músico Evaldo Rosa, fuzilado por um pelotão do Exército no Rio, num domingo de 2019, quando ia de carro com a mulher, o sogro e os filhos para um chá de bebê. Luciano Macedo, um catador de latas que tentou socorrê-lo, também foi baleado e morreu. Não havia nem GLO. Alegou-se que Evaldo e Luciano foram confundidos com bandidos.
O absurdo foi tão gritante que o julgamento resultou numa inédita condenação do tenente que comandava a patrulha e de outros sete militares. As penas variaram de 28 anos a 31 anos e seis meses de cadeia. O problema é que o caso ainda está pendente de recurso. E nada assegura que a Justiça Militar não volte a exercitar sua tradicional cegueira.
O ideal seria que o emprego de força militar na segurança pública voltasse a ser uma exceção. Primeiro porque não resolve o problema da criminalidade urbana. Segundo porque adiciona uma anomalia em ambiente já crivado anormalidade. Ministro do Exército da gestão Sarney, o general Leônidas Pires Gonçalves, que morreu em 2015, já avisava: "Quartel não tem algemas."
Por Josias de Souza
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