sexta-feira, 14 de junho de 2024

Parceria estuprador-Estado de Sóstenes é teste de captura das instituições


O deputado Sóstenes Cavalcante e a metáfora inspiradora de seu projeto de lei. Se ele quer a parceria entre o Estado e o estuprador contra a vítima, então seria mesmo coisa do diabo se este existisse. Mas é só coisa de Sóstenes mesmo.

O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), este cristão piedoso, teve uma ideia: condenar uma mulher estuprada que se submeta a um aborto depois da 22ª semana de gravidez a uma pena que varia de 6 a 20 anos de cadeia. Seu estuprador, se preso, o que quase nunca acontece, ficará no máximo 10. Dada a aberração mais evidente, esse que se quer intérprete das coisas sagradas resolveu dar outra resposta simples e errada: ora, aumente-se a pena para estupro e pronto! O que diria Beccaria, aos 26 anos, quando publicou "Dos Delitos e das Penas", diante de um reacionário misógino, de quase 50, incapaz de ver gradação entre aborto motivado por estupro e homicídio doloso? Insisto: é o dado mais barulhento de seu PL moralmente criminoso, mas ainda não é o pior. Se existe algo que não é deste mundo movendo a mão de Sóstenes, não é Deus. Mas creio que suas motivações são bem mundanas e fazem parte de uma estratégia. Vamos lá.

A sua estupidez vai bem além da majoração das penas. O Artigo 128 do Código Penal tem esta redação:
"Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro.
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal."

Seu projeto acrescenta um Parágrafo Único:
"Parágrafo único. Se a gravidez resultar de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo."

Esse cara confere ao estuprador o poder indireto de punir a estuprada.

MISOGINIA
Trata-se, é inequívoco, de ódio e desprezo às mulheres. Na condição de vítimas de crime tão abjeto, sofreriam três punições:
1: a primeira é a aplicada pelo agressor;
2: a segunda será a memória permanente da violência sofrida;
3: a terceira ou é a cadeia ou a imposição de uma gravidez provocada pela violência.

APOROFOBIA
Se o texto vira lei, os serviços de saúde públicos e privados serão proibidos de fazer o aborto. É claro que as principais prejudicadas serão as mulheres pobres -- e, muito especialmente, as meninas pobres.

Houve, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 73.024 estupros no país em 2022. Nada menos de 70% foram cometidos contra meninas de até 13 anos. Eram negras 57%. Em 68% dos casos, a violência aconteceu dentro de casa, praticada por um familiar (64%). Eis aí um conjunto de motivos que explica a notificação tardia da gravidez — depois da 22ª semana às vezes. Meninas são impedidas de ir ao médico por quem as violou.

Em 2020, segundo o Ministério dos Direitos Humanos, ainda sob Damares Alves, houve a notificação de duas meninas grávidas com menos de 10 anos; de 17.525 na faixa entre 10 e 14 e de 363.252 entre 15 e 19. Eis o Brasil em que o "cristão" abaixo de qualquer suspeita lança o seu projeto.

É claro que há violência sexual entre os mais abastados, mas as circunstâncias sociais facilitam a denúncia e, se preciso, o aborto.
Continua após a publicidade

Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.Quero receber

INCONSTITUCIONALIDADE
Dispõe o Artigo 3º da Constituição:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Alguém consegue imaginar, fora do terreno da ficção, uma situação em que se imporia a um homem a reprodução? Mas Sóstenes acha que se pode, sim, impô-la às mulheres. Não em qualquer circunstância, bem entendido. Só em caso de estupro!

Aberrante, nauseante, discriminatório, inconstitucional!

É UM EXPERIMENTO
O deputado deixou claro que ele está numa cruzada política -- e as estupradas que se danem -- para tentar colocar, acreditem, o presidente Lula numa situação difícil. Disse:
"O presidente mandou uma carta aos evangélicos na campanha dizendo ser contra o aborto. Queremos ver se ele vai vetar. Vamos testar Lula".

Eis o modo como este senhor trata a vida humana.

Não há dúvida de que, em caso de aprovação, aposta-se num veto para, então, pregar no presidente a pecha de defensor da descriminação do aborto, o que ele nunca foi.

Mas há mais do que isso. Sóstenes não é um qualquer. É cobra criada. Ele e alguns da sua turma não disfarçam mais a intenção de pôr fim à laicidade do Estado. E não porque se sintam especialmente inspirados por uma força divina, mas porque a religião se tornou um dos caminhos da captura do aparelho estatal. Pode não parecer, mas se trata de mais um instrumento de um projeto de poder.

Na semana passada, em meio já à pauleira contra o governo porque decidiu acabar com a mamata e com a ladroagem dos créditos presumidos do PIS-Cofins — e depois da "polêmica das blusinhas" —, o governador Tarcísio de Freitas isentou as igrejas do pagamento de ICMS de importados.

ENCERRO
Esse projeto de poder avança, arrombando o caixa e a institucionalidade. Não pensem que Sóstenes ignora que sua proposta é uma monstruosidade. Sabe e é de caso pensado. Ele está à espreita. Se o texto que estabelece a parceria entre o estuprador e o Estado coator passar, então tudo será permitido a ele e à sua súcia.

Não acredito no diabo com chifres e cheiro de enxofre. Se, no entanto, existisse, redigiria o PL do deputado. Ou que outro daria a um violador de mulheres a faculdade de mandar a vítima para a cadeia?

Nenhum comentário: