Gostem ou não, o presidente Lula é muito mais experiente do que parece. Se não colhe, ou AINDA não colhe, o correspondente em popularidade dos frutos de um governo que eu e outros entendemos como bom, dado o tempo (um ano e meio), isso decorre, parece-me, de alguns fatores:
- virulência das redes e ainda mau desempenho dos progressistas nesse setor -- a resistência ao PL dos Estupradores pode ensinar algumas coisas;
- reorganização do mundo do trabalho, com um deslocamento ideológico à direita de demandas;
- eleição, ainda à esteira do aluvião bolsonarista, do Congresso mais reacionário da história -- o corte aqui é sincrônico: reacionário em relação ao tempo vivido;
- contraste, pois entre esse Parlamento reacionário e um presidente progressista, que obteve uma vitória apertada nas urnas;
- deslocamento à direita, especialmente no debate econômico, da imprensa profissional, que ouve mercadistas demais e mercado de menos;
- insistência de Lula numa agenda voltada para, serei genérico, o "interesse nacional" -- que, curiosamente, pauta os conservadores nos Estados Unidos e na Europa; por aqui, a expressão ainda é anátema.
Cada um desses fatores merece reflexão. E há gente na academia se ocupando disso. Esse tempo será bastante rico em exemplos. A campanha eleitoral de 2026 já começou, o que me parece uma sandice. Mas a realidade é a realidade. Ponto.
LULA, O CÁLCULO E O "PADRÃO MORO NO BC"
Retomo a primeira linha para prosseguir. Quando o presidente, na entrevista à CBN, passou uma merecida carraspana em Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, em razão de suas lambanças políticas, estava operando um jogo com duas funções:
1: disse o que, parece-me, tinha mesmo de ser dito. A complacência da imprensa, com raras exceções, com o banqueiro central "autônomo" -- que aceita prêmio de político que faz discurso golpista e é saudado pelo principal líder elegível da oposição -- é o retrato de um tempo e também um sintoma. A reprovação deveria ter sido muito severa. Não foi. Triunfaram as afinidades eletivas sobre a ética, sobre a moral, sobre a Lei da Autonomia, sobre o Código de Conduta dos Servidores do BC. O substrato é seguinte: "Se ele é nossa voz e nossa garantia de que esse Lula aí não vai enveredar por caminhos que consideramos incorretos, não importa muito que transgrida os limites. Estamos com ele". Que coisa! "Mutatis mutandis", é o tratamento que se dispensou a Sergio Moro quando se achava que ele poderia livrar a República dos corruptos, ainda que mandasse o direito penal e a Constituição às favas. Conheço bem essa questão em particular porque sei bem o que enfrentei.
2: mas há o aspecto que, em outros tempos teria sido percebido de imediato. Escrevi ontem um "PS" a um dos textos em que falava de Campos Neto, o pirilampo do antigorvenismo: "PS: De resto, Lula não é bobo. O pau em Campos Neto ajuda a garantir a manutenção da Selic por unanimidade. Como querem os donos da coleira." É evidente que diretor nenhum do Banco Central combina com o presidente se vai votar assim ou assado. Tendo ficado claro que "uzmercáduz" definiram que ou o voto pela manutenção dos juros era unânime ou a especulação teria continuidade, resta óbvio que o presidente quis eliminar qualquer chance de que esse ou aquele do grupo de nove ousassem discordar de Campos Neto. Com sua crítica dura, o presidente selou a unanimidade contra a pretensão de seu próprio governo. Ou por outra: Lula antecipou a unanimidade do Copom pela manutenção da taxa de juros.
Numa cesta de 23 moedas, o real foi a que mais se desvalorizou entre 29 de dezembro de 2023 e este 19 de junho de 2024. Moedas da Argentina, Turquia, México, Colômbia, Indonésia, Filipinas, Peru, Bulgária, Malásia e muitos etecéteras tiveram um desempenho melhor frente ao dólar. Qualquer tentativa de alegar que os fundamentos dessas economias exigem mais robustez do que os do Brasil não esbarra apenas no erro. Chega a ser matéria de decência. Ou de indecência.
Noto que não considero besteiras a questão dos gastos ou a trajetória da dívida. São dados da economia que precisam ser levados em conta. Mas ao custo que se passou a cobrar por aqui? É patente que se articulou, vamos dizer, um "ataque financeiro" contra o país, como se todos os outros fundamentos e evidências inexistissem. Olhemos para o crescimento, para renda do trabalho, para o mercado de trabalho, para a própria inflação — e o Boletim Focus está longe de acenar para o caos — e nos indaguemos: a especulação contra a moeda faz sentido? À parte ódio e ideologia, a resposta é "não". Entender que já não basta ao Copom fazer "aquilo que queremos", mas fazê-lo por unanimidade é coisa que nunca se viu desde que os votos individualizados passaram a ser conhecidos. E, claro!, há cálculo nessa aberração, que está sendo naturalizada.
ENCABRESTANDO O BC
Observem: é precisamente isso o que me incomoda. Os analistas tenham lá as convicções que quiserem ter. Há gente cuja inteligência e cuja independência respeito que defendiam a suspensão da queda da taxa de juros antes mesmo do mais recente ataque. Não me convenceram. Outros sérios me levaram a defender o contrário. O que me parece inaceitável é essa imposição da unanimidade, como a sentenciar: "Ou o Copom faz o que achamos que tem de ser feito, ou diremos que ele não tem credibilidade porque sob a influência do governo", como se viu na jornada passada. Será que não percebem que isso desmoraliza a própria tese da autonomia? Resposta: percebem. Mas quem disse que se queria dita-cuja? Só foi votada em 2021 porque se acendeu a luz vermelha na política: "Lula poderá vencer a eleição; o nosso maluco pode perder; autonomia já!" Justamente para que autonomia não houvesse.
Lula, ele próprio, reitero, ajudou a forjar a unanimidade. E não havia outro caminho. Se há risco de a boiada sair do cercado e estourar, a prioridade é fechar a porteira. A questão é saber como será daqui para a frente.
A minha racionalidade, pela qual peço algum perdão de mentirinha para quem não merece, me diz que o Banco Central tem de ser uma referência do mercado e servir de eventual barreira para apostas tresloucadas, não o contrário. Ou na metáfora-clichê: o cachorro balança o rabo, mas o rabo não balança o cachorro.
Dado o modo que a autonomia assumiu no Brasil, com o presidente do BC exercendo por aí o seu charme pessimista, enquanto procura emprego, o BC resolveu usar no cão uma coleira de linguiça. O resultado é conhecido. Como é se que se vai fazer para que o BC volte, então, a ser autônomo. Sim, também não haverá queda na roda futura. E cuidado!
AMEAÇA
Do comunicado resumido do Copom, ainda se extrai isto:
"O Comitê se manterá vigilante e relembra, como usual, que eventuais ajustes futuros na taxa de juros serão ditados pelo firme compromisso de convergência da inflação à meta."
Alguém me disse: "Sinal de que já anunciam que não haverá queda na próxima jornada". Antes fosse... Trata-se de uma ameaça de elevação da taxa. A meta é de 3%, e a banda de 1,5 ponto passou a ser solenemente ignorada. Inflação de 3%? Em 25 anos de metas, por míseras três vezes a taxa ficou na cada dos 3% ou um pouco menor.
O golpismo ideológico é relativamente fácil de identificar, embora difícil de combater. Este outro é difícil também de perceber porque se vende como racionalidade neutra. E uma nota para encerrar: esses valentes erraram até hoje quase todas as previsões que fizeram. Mas não perdem a compulsão de impor os seus erros aos outros, inclusive e muito especialmente aos pobres.
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