quarta-feira, 19 de junho de 2024

Lira se assusta e recua; se não haverá retrocesso, que texto vá para o lixo


Cercado por líderes dos partidos, Lira anuncia comissão para debater PL dos Estupradores e garante que não haverá retrocessos nos direitos.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) sentiu pela primeira vez, desde que assumiu a presidência da Câmara, o bafo do povo no cangote. Sim, ele é, como se diz, "pragmático" e foi útil na articulação de muitas votações importantes para o país. Destaco o arcabouço fiscal e a reforma tributária. É um mestre do equilibrismo, sempre olhando para a direita. Muitas maldades passaram pelo escritório de contabilidade de votos, sem que seu terno fosse tisnado.

A Lei dos Estupradores colou mais em Lira do que em Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o autor da aberração. Porque foi o presidente da Câmara — sim, com o concurso do Colégio de Líderes — a articular a votação-relâmpago do regime de urgência, pratica que virou rotina sob a sua gestão. Enormidades vão prosperando com o mínimo debate possível.

Lira não é exatamente um político que mobiliza paixões fora do seu Estado e de alguns nichos militantes, que acompanham política mais de perto. Desta feita, a coisa engrossou, e aparecia ele, no imaginário das pessoas, como o pai do monstrengo que condena à cadeia mulheres estupradas e a medidas socioeducativas as meninas, caso recorram ao aborto. A direita com um tiquinho de lucidez não comprou a ideia. Sóstenes e Lira, o viabilizador da urgência, foram abandonados até por parcela do bolsonarismo.

CORPO FORA

Lira também resolveu dividir a estrovenga com os líderes, na linha "a culpa não é só minha":
"Deixar Claro também que a decisão sobre a pauta da Câmara, e eu agradeço a participação aqui de todos os líderes, é para deixar claro que nós não governamos sozinho. Essa narrativa não é verdadeira. As decisões na Câmara não são monocráticas. Nós somos uma casa de 513 parlamentares, representados por lideranças partidárias, e elas aqui demonstram claramente que qualquer decisão, ela é sempre feita de forma colegiada. Cabe ao presidente, administrativamente, lançar a pauta conduzir os trabalhos, e A isso nunca me furtei nem nunca me furtarei porque sempre tive uma discussão muito clara com todos os parlamentares, da oposição e do governo, deste ou daquele governo, com relação às pautas."

Eis aí. Lira tomou a iniciativa, sim, de pautar. E a urgência contou com a concordância da maioria dos líderes. Sim, é verdadeira a narrativa de que Lira é influente o bastante para decidir o que entra e o que não entra em regime de urgência.

NÃO HAVERÁ RETROCESSO?

Lira prosseguiu, para tentar se livrar das pechas de articulador do reacionarismo mais abjeto que já passou pela Casa:
"Em quarto lugar, reafirmar com muita ênfase, e eu quero atenção de todos, que nada neste projeto -- que eu sempre disse que a importância de um projeto não está na autoria, mas sim na relatoria e em quem vai discutir, como é que vai sair o texto, e, a partir daí, qualquer juízo de valor... -- nada irá retroagir nos direitos já garantidos, e nada irá avançar que traga qualquer dano às mulheres. Nunca foi e nunca será tema de discussão de Colégio de Líderes qualquer uma dessas pautas".

Folgo em saber, claro! Mas então o projeto precisa ser arquivado no lixo. Vira uma conversa de loucos. Se o texto pune com até 20 anos de cadeia a mulher que, vítima de estupro, submeta-se a um aborto depois da 22ª semana de gravidez; se uma menina ainda inimputável poderia ser submetida a medidas socioeducativas, como é que não há retrocesso nos direitos? Como é que se pode negar que se impõem danos às mulheres?

Se "nunca foi nem nunca será tema de discussão" no Colégio de Líderes, como é que votou a urgência?

CUIDADO COM A CASCATA

Na sequência, Lira anunciou a tal comissão e tentou justificar a aberração com a conversa de que a Câmara é democrática e debate todos os assuntos etc. e tal.

Claro! Todos apreciamos a democracia. Mas é bom, sim, ter um filtro prévio sobre o que pode e o que não pode ser debatido, não é mesmo? Se alguém decidir reinstituir a escravidão ou indenizar os descendentes dos senhores de escravos por suas "perdas", acredito que debater tais assuntos avilta a Câmara, em vez de lhe conferir autenticidade democrática.

Da mesma sorte, debater que punição se deve aplicar à mulher ou à menina estuprada avilta não só Casa, mas a condição humana.

ENCERRO

O fato é que Lira tocou adiante mais essa pauta, no arranjo com a bolsonarada, que anda a fazer exigências para apoiar esse ou aquele nomes à sua sucessão. E não esperava a reação. Só que ela veio e o colheu em cheio.

Lira sentiu.

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