Eu tenho, obviamente, mais o que fazer do que tirar as esperanças de bolsonaristas fanáticos, que andam tristinhos até com Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo. Não fosse meu apreço pelos fatos, eu os deixaria mergulhados na ilusão de que seu "Mito" vai recuperar a elegibilidade. Mas sabem como é... Essa profissão também tem um sentido de missão: buscar a verdade. Então, de saída, digo: o projeto de lei de um ex-deputado petista, que Arthur Lira (PL-AL), presidente da Câmara, decidiu desengavetar, terá efeito zero sobre a delação de Mauro Cid — e, pois, ainda que aprovado, não vai beneficiar Jair Bolsonaro. Tanto não vai que este escriba, fiel a suas convicções, defende a aprovação. Sempre fui contra a delação premiada de gente presa. E continuo. Apanhei muito por isso. Inclusive dos discípulos do capitão e dos de Sergio Moro, o réu. Então vamos aos fatos.
A imprensa foi tomada por um aluvião ontem. Lira, o solerte, decidiu pôr para tramitar em regime de urgência um PL de 2016 do então deputado petista Wadih Damous (RJ). A íntegra está aqui. O texto propõe mudanças na Lei 12.850, que trata das organizações criminosas e que ficou conhecida como "lei das delações". Damous propõe que:
1 - somente seja "considerada para fins de homologação judicial a colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo";
2 - "Nenhuma denúncia poderá ter como fundamento apenas as declarações de agente colaborador ";
3 - "As menções aos nomes das pessoas que não são parte ou investigadas na persecução penal deverão ser protegidas pela autoridade que colher a colaboração";
4 - "Constitui crime divulgar o conteúdo dos depoimentos colhidos no âmbito do acordo de colaboração premiada, pendente ou não de homologação judicial".
Muito bem. Isso estava dormitando na Câmara desde 2016. E agora Lira decidiu ceder ao apelo de alguns líderes e pôr o texto para tramitar em regime de urgência. Os bolsonaristas fizeram como o sapo quando soube que haveria uma festa no céu: "OBAAAAAA". Por quê?
Ora, se aprovado o PL, imaginaram, a delação de Mauro Cid seria tornada inválida — e, pois, todas as suas consequências. E pronto! Consta que Lira também pode ter feito esse cálculo. Duvido um pouco. Tem fama de ser muita coisa, mas nunca ouvi que seja burro.
PARTE JÁ É LEI
Para começo de conversa, informe-se que parte do que vai no Projeto 4.372/2016 já foi incorporado à Lei 12.850 ou pertence a outros diplomas legais:
- a própria 12.850 já define que delação é meio para obtenção de prova (Artigo 3ª A); logo, a simples delação não basta para produzir qualquer efeito legal. A mudança se deu em 2019, por intermédio do chamado "pacote anticrime" (Lei 13.964);
- o Artigo 3º-B, também do pacote anticrime, já impõe sigilo sobre a delação: "O recebimento da proposta para formalização de acordo de colaboração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documento que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial.";
- criminalizar a divulgação de conteúdo sigiloso, entendo, é desnecessário porque a tipificação da conduta já está no Artigo 325 do Código Penal, a saber: "Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave."
FALTOU O QUÊ?
Como veem, no bloco anterior faltou uma referência ao "Item 1" da proposta de Wadih Damous, a saber: "somente será considerada para fins de homologação judicial a colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor".
E foi nesse ponto que os sapos do bolsonarismo abriram a bocarra: "OBAAAA!!!" E dizem que Lira atuou para excitá-los. Se o fez perdeu tempo. Por que o frenesi?
Todas as delações de pessoas presas — como é o caso de Mauro Cid — perderiam, então, validade. E o "Capitão" se livraria, entre outas, das imputações de tentativa de abolição do estado de direito e de tentativa de golpe de Estado. Bem, isso está errado de dois modos.
O ERRO PRINCIPAL
Os valentes estão apostando no Inciso XL do Artigo 5º da Constituição:
"XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".
Ainda que essa redação no modo "negativa com ressalva" cole o platinado de alguns, o que se está a dizer ali é que a lei penal só retroage se for para beneficiar o réu, nunca para punir. Por isso os presos que já tinha direito à "saidinha" vão conservá-lo, por exemplo.
Sei lá se um mau assessor andou soprando ao ouvido de Lira que a 12.850 é uma "lei penal", de modo que toda alteração que seja considerada um benefício ao réu tenha de retroagir. Se alguém o fez, andou mal. E acabou inundado os corações amargos dos bolsonaristas com a esperança do caos.
A 12.850, que traz o vasta Seção I "Da Colaboração Premiada", é uma lei processual penal, como explicita, literalmente, o Artigo 3º-A, justamente o que trata das delações:
"Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos."
"Negócio processual", entendem? Vale a regência do Artigo 2º do Código de Processo Penal:
"Art. 2º - A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior."
Se alguém não entendeu: uma vez alterada uma lei processual penal, seu efeito é imediato, nem que seja para impor condições mais gravosas. Mas o que está feito está feito. Os atos realizados sob a vigência de lei anterior seguem válidos.
APROVEM O TEXTO DE DAMOUS
Por mim, aprovem o texto proposta por Damous em 2016. Nunca gostei da ideia de gente presa fazendo delação. Isso não muda um milímetro a validade daquelas que já foram feitas, com suas consequências, a menos que se descubra, por exemplo, conluio entre juiz e procurador picaretas, tornando tudo viciado -- se é que me entendem.
Se é verdade que Lira está tentando emprestar a mão amiga a Bolsonaro, bem..., será inútil.
O OUTRO ERRO
Há um segundo erro, embora, nesse contexto, seja inócuo, dado que a eventual aprovação do PL não mexe um milímetro com as delações já feitas: as provas contra Bolsonaro, especialmente da tentativa de abolir o estão de direito e de dar golpe de estado, não derivam apenas da delação de Mauro Cid. Mas isso, reitero, é quase uma nota à margem. A tese principal não se sustenta.
"Ah, Reinaldo, mas, se aprovado o texto, eles vão recorrer". É... Até acho que sim. O recurso teria de ser apresentado ao Supremo.
Ainda que a coisa passe, a hipótese de que possa beneficiar Bolsonaro só não é inferior a zero porque isso ainda seria emprestar uma escala ao impossível.
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