quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

CRIVELLA E VERDADES INCONVENIENTES 1: Incompetência, religião e roubalheira



Vamos a algumas considerações sobre a prisão preventiva do ora afastado prefeito do Rio, Marcelo Crivella, e de algumas pessoas do seu entorno, correndo o risco — e isto não é novo — de desagradar a gregos, troianos e guerreiros sem partido, dispostos apenas a atirar.

A IGREJA UNIVERSAL
De saída, destaque-se que foram para a cadeia dois parentes de Edir Macedo, comandante máximo da Igreja Universal do Reino de Deus: o próprio Crivella, que é seu sobrinho, e Mário Macedo, primo de Edir, braço direito do prefeito e homem de confiança do próprio patriarca. Embora católico, Mário já exerceu cargo de comando, por exemplo, na Line Records, uma das empresas ligadas à Universal. Quando tem alguma desconfiança sobre a fidelidade, vamos dizer, financeira de seus subordinados, Macedo -- o Edir -- recorre a Macedo, o Mário, para a prova dos noves. O homem é uma espécie de auditor "in pectore" do empresário Edir Macedo.

É evidente que é impossível dissociar essas prisões da natureza do Republicanos, partido que tem uma singularidade: nenhum outro é braço de uma denominação religiosa. Este, com justiça, é considerado propriedade da Universal — de Macedo, portanto. Crivella é um bispo licenciado da Igreja, assim como Marcos Pereira, deputado (SP), presidente da legenda e primeiro vice-presidente da Câmara.

O ABRIGO DOS BOLSONAROS
O entorno do presidente Jair Bolsonaro tenta fazer o diabo -- com o perdão da palavra em texto em que falamos de homens tão pios -- para evidenciar que ele nada tem a ver com Crivella. Bem, os fatos apontam na direção oposta. O mandatário de Brasília pode não ter relação com as acusações que pesam contra o prefeito, mas as vinculações políticas, hoje, são escancaradas.

O Republicanos serviu de abrigo aos Bolsonaros: o senador Flávio e o vereador Carlos aportaram na legenda à esteira da crise do clã com o PSL. Quando a turma de Macedo abriu os braços para o Zero Um, o dito escândalo da "rachadinha" — diminutivo simpático para designar "peculato (roubo de dinheiro público) — já estava dado em todos os seus contornos.

Logo, pode-se dizer, sem medo de errar, que alguém com a biografia de Flávio não constrange o senso de moralidade do Republicanos — e, por consequência, dos donos da legenda: a igreja e seu patriarca. O partido chegou a ter alguma dúvida se aderia ou não ao bloco formado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), que ainda escolherá um nome para disputar a Presidência da Câmara, se lançava um candidato (o próprio Pereira) ou se embarcava na nau bolsonarista, liderada por Arthur Lira (PP-AL). Bidu! Os valentes escolheram o capitão.

Até porque havia uma dívida de gratidão: o presidente abraçou a candidatura micada de Crivella à reeleição: de forma enfática no primeiro turno; com menos entusiasmo no segundo. E também esse alinhamento expõe a natureza de Crivella, do Republicanos e do mercado ideológico da fé.

INCOMPETÊNCIA ASSOMBROSA
Ainda que Crivella fizesse uma gestão honesta como os anjos, é de se notar a incompetência da gestão como variável independente. Não são assim tão raros os casos em que a roubalheira convive com a prestação de serviços, ainda que estes não primem pela excelência -- e que se note: estamos falando de crime, e criminosos têm de ser punidos.

A gestão de Crivella chega a ser estupefaciente pela inércia, pela inabilidade, pela incapacidade técnica, pela pasmaceira... E, claro!, a população pobre é quem mais padece com a ruindade. Segundo o Ministério Público do Estado, há mais do que isso: também há a roubalheira. Vale dizer: o mau-caratismo teria se juntado à deficiência técnica. Uma coisa é certa: a cidade do Rio vive os últimos dias da pior gestão da sua história.

REACIONARISMO ASQUEROSO
A principal vitrine dos Republicanos era a Prefeitura do Rio -- uma exposição, na verdade, de desastres. A eventual reeleição de Crivella era considerada essencial para tentar minimizar a memória terrificante dos primeiros quatro anos. Sem se dar conta do desgaste da imagem de Bolsonaro nas grandes cidades, o partido apelou ao presidente.

Não deu certo. Ainda que o "capitão" tenha congregado os reacionários todos no apoio a Crivella, o que se viu foi uma consolidação de rejeições solidárias. Crivella já tinha na sua biografia como prefeito o recolhimento da HQ dos Vingadores que trazia um beijo gay na capa. A união com Bolsonaro na disputa deste ano levou a campanha para o esgoto da extrema direita. No auge da delinquência, o prefeito ora encarcerado chegou a dizer que a eventual vitória de Paes implicaria a entrega da Educação para o PSOL, que, então, levaria para as escolas a promoção da pedofilia.

Já não era uma campanha, mas um vômito. Nem o PSOL assumirá a educação. E, por óbvio, se assumisse, a acusação de pedofilia é uma estupidez criminosa.

O CARÁTER DO REPUBLICANOS
Essa inflexão delirantemente reacionária está menos para uma convicção do que para um oportunismo, o que não melhora em nada a moral da história. Até piora. Expõe o caráter de um grupo político que constituiu, por exemplo, a base de apoio ao PT quando este estava no poder.

Dilma Rousseff foi uma das estrelas da inauguração do chamado "Templo de Salomão", a faraônica sede da Universal em São Paulo, e Crivella foi seu ministro da Pesca entre 2 de março de 2012 a 17 de março de 2014. Assim que foi indicado para o cargo, resumiu a sua experiência no assunto:
"Nem sei colocar uma minhoca no anzol. Eu preciso aprender muito. Conheço um pouquinho na teoria e muito menos na prática. Vai ser mesmo um intensivão".

E como se justificava a adesão de uma estrela da Universal, com convicções genericamente conservadoras, a um governo nominalmente de esquerda? Crivella deu uma resposta que os integrantes do Republicanos dariam hoje para justificar a parceria com Bolsonaro:
"Espírito público, político, de saber como as coisas caminham, resolver as controvérsias, eu diria sossegar as vaidades e egos, isso eu tenho boa experiência".

O prefeito agora encarcerado, sob a acusação de liderar uma organização criminosa, agarrado ao que a extrema direita produziu de mais abjeto, servia a um governo de esquerda há pouco mais de seis anos.

O CARÁTER DA UNIVERSAL
Aqui é preciso pensar um tanto o pentecostalismo muito particular da Igreja Universal do Reino de Deus. Uma das precursoras no país da chamada "Teologia da Prosperidade" -- uma espécie de "aposte, com uma oferta à igreja, que Deus responderá com abundâncias" --, a denominação comandada por Edir Macedo reflete algumas heterodoxias do próprio líder.

Se, para boa parte do pentecostalismo — e do cristianismo —, o aborto, por exemplo, é uma abominação, não é essa a convicção de Macedo.

Em vídeo desaparecido do Youtube, ele fez uma espécie de palestra. E afirmou:
"Eu pergunto: 'O que é melhor? Um aborto ou uma criança mendigando, vivendo num lixão?' O que é melhor? A Bíblia fala que é melhor a pessoa não ter nascido do que ter nascido e viver o inferno. Eu sou a favor do aborto, sim. E digo isso alto e bom som, com toda a fé do meu coração. E não tenho medo nenhum de pecar. E, se estou pecando, eu cometo este pecado consciente... "Se'... Eu não acredito nisso. É uma questão de inteligência, nem de fé. Lá em Nova York, depois que foi promovida a lei sobre o aborto, a criminalidade diminuiu assustadoramente. Por quê? Porque deixou de nascer criança revoltada, a criminalidade diminuiu".

Macedo dizia estar amparado por um trecho do Eclesiastes (6,3) para defender seu ponto de vista, a saber:
"Se um homem tem cem filhos e vive muitos anos, por mais numerosos que sejam os dias de seus anos, se sua alma não se sacia de felicidade e nem sequer lhe dão uma sepultura, eu digo que um aborto é mais feliz do que ele".

É evidente que nada há aí que justifique o aborto. Ao contrário, a prática é citada como o extremo da fealdade.

O que demonstro é que as heterodoxias políticas do Republicanos/Universal são compatíveis com suas heterodoxias teológicas. O grupo político que já serviu ao petismo — e do qual o petismo se serviu — é aliado circunstancial de Bolsonaro. E nada impede que possa buscar outras alianças, produzindo, no caminho, desastres como Crivella.

CRIVELLA E VERDADES INCONVENIENTES 2: Preventiva, domiciliar e açodamento


A defesa de Marcelo Crivella recorreu ao STJ contra a prisão preventiva. O ministro Humberto Martins, presidente do tribunal, no exercício do plantão judicial, converteu a decisão em prisão domiciliar, com uso de tornozeleira e restrição de contato com investigados. Considerou as acusações graves, mas não viu motivos para que não fosse substituída por cautelares diversas da prisão. Então vamos ver.

As acusações que pesam contra o prefeito são pesadas.

Afirma o Ministério Público do Estado:
"O vértice da organização criminosa é ocupado por Marcelo Crivella, que, na qualidade de Prefeito do Rio de Janeiro, concentra em suas mãos as atribuições legais indispensáveis para a consecução do plano criminoso, meticulosamente elaborado pela organização criminosa. Em outras palavras, seu status funcional de alcaide lhe confere, e a mais ninguém, a capacidade de executar e determinar a execução dos atos de ofício necessários à materialização das escusas negociatas".

O objetivo do grupo, diz o MP é
"Aliciar empresários para participação nos mais variados esquemas de corrupção, sempre com olhos voltados para a arrecadação de vantagens indevidas mediante promessas de contrapartidas".

Sendo mesmo assim, o lugar do prefeito e dos que atuaram com ele é a cadeia. Mas depois de condenado.

Na abordagem de verdades incômodas (leia mais aqui), faço, nesse caso, a pergunta que tem se tornado corriqueira no país: a prisão preventiva era necessária e atende aos requisitos previstos no Artigo 312 do Código de Processo Penal, a saber: garantia da ordem pública ou econômica, garantia da instrução criminal ou risco de não aplicação da lei penal (fuga)?

Crivella tem mais nove dias de mandato. Para sustentar o pedido de prisão antes do oferecimento da denúncia, suponho que o MP tenha recolhido já uma pletora de indícios ou provas — e contundentes o bastante para convencer a desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, que decretou as prisões e as manteve depois da audiência de custódia.

Pergunta: nos nove dias restantes, essas provas correriam algum risco? O prefeito cometeu algum outro crime que não aqueles que devem compor a denúncia, quando houver? Por determinação constitucional, o foro dos prefeitos é o Tribunal de Justiça (Artigo 29). A partir do dia 2 de janeiro, no entanto, o caso de Crivella terá de migrar a para a primeira instância, já que jurisprudência do Supremo devolve para essa esfera os processos

Lembro tese definida pelo tribunal no julgamento da Ação Penal 937:
"(I) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e
(II) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo."

O caso de Crivella, que nem denúncia tem, está muito longe da fase das alegações finais. Parece-me que a prisão preventiva, nessas circunstâncias, atende mais a um certo clamor do que a rigor da Justiça. Convém lembrar sempre que os motivos de uma preventiva não devem se confundir com os motivos de uma condenação.

Crivella, como exponho nestes dois artigos, encarna tudo o que mais abomino em política. Mas me oponho ao pega-pra-capar judicial que ele e seus aliados apoiaram um dia. Que seja vítima daquilo que seus próprios partidários incentivaram não muda a natureza das coisas.

A prisão se dá durante o recesso judicial, que começou no dia 20 — e o presidente do TJ responde pelo tribunal, a menos que Rosa Helena tenha comunicado que continuaria a despachar, o que é permitido. De toda sorte, junto com a prisão, veio o afastamento do mandato — ainda que uma coisa pareça implicar a outra, são distintas.

Parece-me que só um colegiado do TJ poderia tomar essa medida, ainda que o mandato de Crivella esteja na reta final. O país não pode correr o risco de banalizar o afastamento de pessoas eleitas de seus respectivos cargos por meio de decisões monocráticas, mormente quando tomadas em situações excepcionais.

Martins amansou a decisão da desembargadora, mas não a contestou. Esse mesmo tribunal viu um de seus ministros afastar monocraticamente um governador de Estado.

Pode até haver aqui em mim um quê de implacabilidade, que se regozijaria com a ida de Crivella para Bangu 8, o que não aconteceu ainda. Um gosto pessoal não se confunde com a questão institucional. Hoje é Chico. Amanhã é Francisco.

Ser Crivella o político odioso que é não pode abrir as porteiras para uma decisão arbitrária. Ou melhor: essas porteiras, em muitos outros casos, estão abertas faz tempo. A prisão de um político cuja trajetória repudio não me leva a um juízo oportunista a respeito. Mesmo contra oportunistas.

Por Reinaldo Azevedo

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