sábado, 19 de dezembro de 2020

Bolsonaro oscila entre montanha e roleta-russa



Em tempos de crise, um presidente deve colecionar aliados e fugir de brigas. Bolsonaro faz o oposto. Nesta sexta-feira, o presidente voltou a espinafrar a imprensa. Comete um erro primário. A imprensa apenas alimenta as crises que Bolsonaro produz. Se o inquilino do Planalto fosse uma usina de serenidade, as manchetes mudariam instantaneamente de assunto.

Bolsonaro sempre foi ciclotímico. Mas alguém esqueceu de pingar o barbitúrico no café do Alvorada. Nas últimas horas, o capitão operou no modo montanha russa. Passou a dizer uma coisa e o seu contrário em intervalos mais curtos. Sem enrubescer a face.

Num dia, em São Paulo, criticou João Doria por defender a privatização da Ceagesp, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo. Associou o rival a um roedor: "Nenhum rato vai querer sucatear isto aqui para privatizar para os seus amigos."

No dia seguinte, em solenidade no Planalto, avalizou a inclusão da "vacina chinesa do Doria" no plano nacional de imunização. Discursou para governadores com respeito e compostura. Levou aos lábios vocábulos como "entendimento" e "paz". Ou seja: estava completamente fora de si.

Menos de 24 horas depois de lançar o plano de vacinação, Bolsonaro voltou a mostrar o que tem por dentro. Não vou tomar a vacina, reiterou, antes de enumerar os efeitos colaterais: "virar um jacaré", "nascer barba em alguma mulher" ou "algum homem começar a falar fino."

Falando fino para os governadores, esbanjou otimismo: "Brevemente estaremos na normalidade." Dirigindo-se aos devotos na live noturna de quinta-feira, expressou-se como o velho político de sempre. Grosso modo falando: "Não tem vacina para todo mundo". Portanto, é "inócua" a decisão do Supremo que deu à vacinação anti-Covid ares de coisa obrigatória.

Nesta sexta, Bolsonaro reencontrou-se com o microfone numa formatura de policiais militares, no Rio de Janeiro. Esgrimiu uma de suas obsessões: o excludente de ilicitude. Trata-se de um jabuti que ele tenta colocar para andar no Congresso. Consiste numa permissão para que o juiz deixe de impor pena ao policial que matar quando o tiro for disparado sob "escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

"Em uma fração de segundo", discursou Bolsonaro para os PMs, "está em risco a sua vida, a de um cidadão de bem ou a de um canalha defendido pela imprensa brasileira. Não se esqueçam disso. Essa imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês. Pense dessa forma para poder agir."

Policiais cariocas já mataram um cidadão que empunhava uma furadeira. Eliminaram outro que portava um guarda-chuva. Os "canalhas" da imprensa não atiram para matar. Bolsonaro precisa definir se aqueles policiais que assassinam cidadãos desarmados agem por "escusável medo", "surpresa" ou "violenta emoção".

O mesmo Bolsonaro que receia que as vacinas transformem maricas em jacarés sustenta que "a maior fábrica de fake news está na grande parte da imprensa brasileira." Bom mesmo é "a liberdade das mídias sociais". Essas, sim, apinhadas de devotos do bolsonarismo, "trazem a verdade para vocês."

Na formatura dos PMs, Bolsonaro levava a tiracolo o primogênito Flávio. Trocou o "entendimento" e a "paz" que esgrimira no início da semana pela beligerância num dia em que duas revistas penduraram o Zero Um de ponta-cabeça em suas manchetes.

A revista Época estampou entrevista com a advogada Luciana Pires, que representa Flávio Bolsonaro. A doutora confirmou ter recebido da Abin relatórios com orientações para tentar anular o processo que deixa a imagem da família Bolsonaro bem rachadinha.

A revista Cruzoé esmiuçou mensagens que revelam que foi o delegado Alexandre Ramagem, amigo dos Bolsonaro e mandachuva da Abin, quem encaminhou a matéria-prima para a defesa de Flávio.

Só Bolsonaro, seu primogênito e o operador Fabrício Queiroz sabem o tamanho do buraco em que estão metidos. Dias atrás, numa conversa com Datena, o capitão disse coisas definitivas a respeito dos seus vínculos com o operador de rachadinhas: "O Queiroz pagava conta minha também. Ele era de confiança."

Podendo definir muito bem as coisas, preferiu desconversar: "A pressão em cima do meu filho é para me atingir. Não é só em cima do meu filho, é em cima de esposa, de ex-mulher, outros filhos, parentes meus, amigos que estão do meu lado..."

E quanto aos R$ 89 mil na conta de Michelle? "Vamos apurar? Vamos. Mas cada um com a sua devida estatura. E não massacrar o tempo todo como massacram a minha esposa." Para Bolsonaro, Queiroz "está sendo injustiçado também."

É como se Bolsonaro oscilasse entre a montanha russa e a roleta-russa. Ele parece testar até onde pode levar o desprezo pela inteligência alheia sem ser incomodado. Desconsidera o fato de que usar a língua como um tambor de revólver também pode ser uma modalidade de suicídio político.

No caso de Bolsonaro, porém, todo risco é muito bem calculado. O capitão atira palavras ao vento mais ou menos como se praticasse roleta-russa protegido pela certeza de que manipula uma sinceridade completamente descarregada. O único problema é que o cinismo não produz vacinas nem empregos.

Por Josias de Souza

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