sábado, 1 de julho de 2023

Surgiu um espetáculo novo na política: a desbolsonarização da conjuntura


Bolsonaro em foto com cicatriz Imagem: Reprodução/Instagram/João Menna

Ao banir Bolsonaro das urnas até 2030, o TSE inaugurou um novo espetáculo político: a reinvenção da direita. Bem feita, leva à desbolsonarização. Malsucedida, conduz ao desastre. A influência política de um Bolsonaro inelegível tende a minguar na proporção direta da capacidade do conservadorismo não troglodita de articular altenativas civilizadas. A pretensão do capitão de se qualificar como cabo —"Um cabo eleitoral de luxo!"— dependerá também do desempenho de Lula. De resto, pisca no letreiro uma dúvida de trânsito: Como se chega ao centro?

Com o seu 5 a 2, o TSE apenas acomodou num freezer de oito anos uma aberração que as urnas de 2022 já haviam empurrado para a geladeira. Na prática, a Justiça Eleitoral apenas renovou o convite para que o conservadorismo nacional entre numa câmara de descompressão. A descontaminação não será um processo simples, pois Bolsonaro agora entoa Noel: Com que roupa? No momento, o capitão experimenta o figurino de vítima.

Além do desafio da desintoxicação, a direita precisará endireitar sua imagem. Uma harmonização facial não resolveria o problema. O caso é de operação plástica. O apoio a Bolsonaro criou uma monstruosidade que dá à direita uma aparência aterradora. Mal comparando, o conservadorismo arcaico ficou parecido com aquele monstro que tomou forma num livro publicado em 1818. A criatura do livro era feita com partes de cadáveres de camponeses —o entulho humano do mundo feudal que terminava de acabar no século 19.

Afora a origem antinatural e o tamanho desproporcional, o mais espantoso no monstro do doutor Frankenstein, nascido da imaginação de Mary Shelley, era a vontade de viver como gente. A criatura incorporada pela direita brasileira, feita de uma mistura de fuligem ideológica com detritos morais, também se esforça para exibir traços humanos. Mas não consegue.

No livro de Mary Shelley, o monstro diz ao doutor Frankenstein: "Faça-me feliz, mestre, e eu serei virtuoso." O discurso de Bolsonaro, mais primitivo e menos afetuoso, é 100% feito de resíduos verbais das décadas de 1960 e 1970. Inclui moralismo bisonho, idolatria à ditadura militar, ódio à diversidade, desapreço à liturgia democrática e desprezo por toda forma de liberdade de expressão que não seja criminosa.

Há muitos candidatos a herdeiro do espólio eleitoral de Bolsonaro. Na família da besta, a bela Michelle se apressa em bater continência: "Estou às ordens, meu capitão". Entre os herdeiros políticos, o governador paulista Tarcísio de Freitas, primeiro na fila do centrão, demora a tirar a mão da alça do caixão: "A liderança do presidente Bolsonaro como representante da direita brasileira é inquestionável e perdura."

Se o assanhamento de Michelle e a hesitação de Tarcísio servem para alguma coisa é para mostrar que, simultaneamente à análise dos nomes, será inevitável discutir o método da desintoxicação. Além de herdeiros, Bolsonaro deixou órfãos. A turma do 8 de janeiro está presa ou arrastando tornozeleiras eletrônicas à espera de uma sentença. Quem escapou do flagrante procura um lado da Terra plana para saltar. Abre-se a perspectiva de recuperação dos que já notaram que o mundo gira e a fila anda.

Em 2018, ajudaram a carregar o andor do falso Messias: antipetistas, lavajatistas, militaristas, ruralistas, evangelistas, machistas, racistas, globalistas e criminosos. A inelegibilidade do mito não fez desaparecer do mapa eleitoral esses votos. Para lidar com a legião dos "istas" e seus estigmas, convém compreendê-los. A compreensão ilumina a conjuntura cinzenta, realçando nuances e tonalidades.

Com machistas e racistas não tem conversa. Para os globalistas, camisa de força. Para os criminosos, cana dura. Quanto ao restante, cabe às lideranças políticas refinar o olhar e o discurso. Há antipetistas que não aderiram à antipolítica. Há lavajatistas que abominam com a mesma intensidade o restabelecimento da imoralidade e o desserviço prestado pelo ex-Moro à causa anticorrupção.

Militares avessos ao golpismo continuam mudos, mas o celular do coronel Mauro Cid haverá de abrir-lhes os olhos. Nem só de trogloditas é feita a tribo dos ruralistas. Há, de resto, evangélicos que têm muito respeito por Deus para considerá-lo parceiro do populismo que busca o dízimo nos cofres do Estado laico. Há até religiosos que percebem que a família tradicional é feita da mesma maneira que as outras. A diferença é que o amor às vezes é substituído pelo preconceito.

Desintoxicando-se em três anos e meio, a direita pode retornar ao palco em 2026. Se o Brasil tiver sorte, o caminho da direita passará por algum desvio que leve ao centro. Nessa hipótese, chega-se a uma versão qualquer da centro-direita. Do contrário, arrisca-se a assistir à quarta posse de Lula. Isso, naturalmente, se o pajé do PT tiver juízo e desempenho.

Com juízo, Lula para de tratar ditaduras absolutas de sua estima com democracias relativas. Dando mão forte ao ponderado Fernando Haddad, talvez obtenha algum resultado positivo na economia. Sem bola de cristal, a conjuntura recomenda que sejam consideradas todas as hipóteses. Na melhor das hipóteses, o Brasil realiza o sonho da desbolsonarização. Na pior das hipóteses, o país realiza o pesadelo do retorno do inelegível às urnas em 2030. Ou antes.

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