quarta-feira, 5 de maio de 2021

Paulo Gustavo: é o desastre civilizatório que nos mata; vírus é só um meio



Um juízo meio torto, de moralismo raso, pode estranhar que, com mais de 412 mil mortos por Covid-19, seja um morto, Paulo Gustavo, a criar uma onda de choque nas consciências, como se percebe na imprensa, nas redes sociais e em toda parte. E, no entanto, nada há de estranho nisso. A tragédia que colheu o ator e diretor de 42 anos, um dos mais talentosos e bem-sucedidos de sua geração, traz a morte para o meio de nós.

E a morte tem sido a nossa mais constante companheira. Para afastá-la, os que podemos ao menos, temos adiado encontros, abraços e afetos. O excesso, no entanto, adormeceu um tanto a nossa indignação e nos empurrou ou para o silêncio ou para o protesto burocrático. Como em "Rosa dos Ventos", de Chico Buarque, deu na gente "o hábito/ De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr".

O vírus nos separa, nos isola e nos empurra para as nossas dores íntimas. Não, meus caros! Não há lado bom na morte de Paulo Gustavo. Mas devemos fazer de tudo para que não seja apenas mais uma rumo aos 500 mil óbitos, em meio ao desastre civilizatório que está em curso no país. Que ela tenha o condão de nos religar. Não sabemos como ele se contaminou. Pertencia, sim, à parcela dos privilegiados que conseguem se expor o mínimo possível e que têm mais chances de se defender.

E, como se sabe, o isolamento social é, por ora, o meio mais seguro de nos proteger, mas não é uma garantia absoluta. Cada um refaça a sua própria rotina, ainda que em resguardo, e vai constatar as muitas vezes na semana ou num só dia em que o insidioso pode estar a nos rondar. Numa dessas, pegou Paulo Gustavo e o levou. Era jovem — 42 anos —, saudável, rico. Juventude já não protege. Saúde já não protege. A Covid-19 ainda mata mais os pobres de tão pretos e pretos de tão pobres. Mas não tem preconceito de classe.

Não, Paulo Gustavo não tem o perfil da maioria dos mortos — parte considerável sem nem direito a uma sepultura individual. E, vejam vocês, até por isso, a sua morte assume o papel de uma advertência: ninguém está seguro. Ela certamente abala um sentimento meio estúpido de onipotência que anda por aí, como se desafiar a doença correspondesse a se tornar imune a ela.

DIA SIMBÓLICO
No dia da morte de Paulo Gustavo, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta depôs na CPI da Covid. Ele contou aos senadores e ao país que Jair Bolsonaro não seguia as disposições técnicas do Ministério da Saúde. Preferia a orientação de negacionistas. Impôs o tratamento com cloroquina ao arrepio da ciência e até ensaiou mudar a bula da droga por decreto. Ignorou o alerta que seu então ministro lhe fizera sobre o risco de haver milhares de mortos do país e colapso no sistema de saúde. Também nesta terça, Eduardo Pazuello, que viu o número de mortos crescer 1.808% em 10 meses de gestão, alegou possível contaminação e adiou seu depoimento.

"Ah, vai querer culpar Bolsonaro pela morte de Paulo Gustavo?" A pergunta está errada. Tivéssemos um presidente decente, afinado com a ciência — talvez só o bom senso bastasse —, não se pode assegurar que o ator estivesse vivo. A pergunta é outra: quantos milhares de brasileiros teriam se salvado se as vacinas tivessem sido compradas a tempo; se houvesse uma campanha nacional de prevenção; se o presidente não estimulasse aglomerações; se não faltassem oxigênio e anestésicos; se o país tivesse se preparado para a testagem em massa — o que permitiria restringir ou acelerar o ritmo da atividade econômica de acordo com informações técnicas, não com o achismo de aloprados?

E, sim, num cenário em que tivéssemos um governo efetivamente empenhado em combater a doença, tanto Paulo Gustavo como milhares de Marias e Josés poderiam estar ainda entre nós e os seus, tocando esta vida besta, mas que é a nossa. É a que temos.

Se milhares de mortos fizeram adormecer as consciências, que seja, então, uma morte a despertar as consciências para os milhares de mortos.

É preciso pôr fim ao desastre civilizatório. É ele que nos mata. O vírus é apenas o seu instrumento.

Por Reinaldo Azevedo

Nenhum comentário: