O morticínio desta quinta no Rio tem um orador: o delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração do Estado do Rio. Afirmou em entrevista coletiva:
"Não há de se comemorar esse resultado, tamanho é o número de pessoas que vieram a falecer, mas, por outro lado, a Polícia Civil não vai se furtar de fazer com que a sociedade de bem tenha seu direito de ir e vir garantido".
Como sempre acontece em casos assim, o que se quer realmente dizer vem depois da conjunção adversativa. O interesse é o que se segue ao "mas, por outro lado". E, no caso, sabem como é, o doutor distingue "a sociedade de bem" daquela que, entende-se, "não é de bem". Nas sete horas de duração da operação, em que se perpetrou o massacre, tudo o que a população do Jacarezinho não pôde fazer foi "ir e vir".
Notaram? Quando Jair Bolsonaro ameaça dar golpe de estado, ele o faz em nome do quê? Ora, do "direito de ir e vir". É fascinante o modo como a extrema direita e os truculentos se apoderaram do discurso das garantias individuais — que existem contra o Estado opressor — com a intenção de... oprimir.
Oliveira afirmou ainda:
"Todos os protocolos exigidos na decisão do STF foram cumpridos, sem exceção. (...) Há de se discutir o que se entende por excepcionalidade. A gente está tratando de algo que talvez seja até superior à questão da excepcionalidade."
Eis aí: quem, afinal de contas, define a "excepcionalidade"? Fica subentendido: aquele que detém as armas e pode impor as operações.
Na sequência, o delegado resolveu dar um pito no Supremo:
"De uns tempos para cá, por força de algumas decisões e de algum ativismo judicial, que se vê hoje muito latente na discussão social, a gente foi, de alguma forma, impedido -- ou minimamente dificultada -- a atuação a Polícia em algumas localidades."
Fica evidente que ele discorda da decisão tomada pelo tribunal. Temos aí um prosélito contra o "ativismo judicial".
Sempre empenhado em defender "a sociedade de bem", ele avança:
"O resultado disso [do tal ativismo] é nada mais do que o fortalecimento do tráfico. Quanto menos você combate, quanto menos você se faz presente, o tráfico vai, obviamente, cada vez ganhando mais poder; vai expandindo seus domínios e avançando cada vez mais para dentro da sociedade organizada".
Pois é... A afirmação é negada pelos fatos.
TRÁFICO PERDE TERRITÓRIO PARA MILÍCIAS
O tráfico está perdendo terreno. Quem está "expandindo seus domínios e avançando cada vez mais para dentro da sociedade organizada" são as milícias. Elas já dominam quase 60% do território da cidade do Rio.
No dia 19 de outubro, noticiou o G1:
"Uma pesquisa inédita sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade. Nessas áreas subjugadas vivem cerca de 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes -- segundo estima o IBGE.
O estudo, batizado de Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, identificou que milicianos controlam área maior do que traficantes de drogas na capital fluminense. "
Vale dizer: 55,7% da população vivem em áreas em que manda o crime organizado. Ocorre que o poder das milícias é muito maior. Segundo o estudo intitulado "Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro", a distribuição é esta:
- 2,1 milhões de pessoas (33% da população) vivem em área sob o comando de milícias;
- 1,1 milhão de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho;
- 337,2 mil pessoas (5,1% da população) vivem em área dominada pelo Terceiro Comando;
- 48,2 mil pessoas (0,7% da população) vivem em área dominada pelo Amigos dos Amigos.
Uma pergunta: o que fez o delegado Oliveira, que se arvora até em juiz do Supremo, contra as milícias? Como é notório, não se assistiu, até agora, a nenhum massacre de milicianos — e, por óbvio, não estou defendendo que se faça um.
Curiosamente, as áreas sujeitas a essas incursões das polícias, que deixam um rastro de sangue, nunca são aquelas que estão sob a tirania miliciana. O Jacarezinho, diga-se, é tido como uma região sob a influência do tráfico — que, ao contrário do que diz o prosélito, está perdendo espaço.
Sim, o tráfico está presente em mais bairros: 55 contra 41 das milícias. Mas estas têm sob controle uma população e um território bem maiores. E com muito mais influência política, certo? Como esquecer que a mulher e a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega, do Escritório do Crime, trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro quando este era deputado estadual? Há declarações do agora senador em defesa das milícias. Em 2007, por exemplo, afirmou:
"A milícia nada mais é do que um conjunto de policiais, militares ou não, regidos por uma certa hierarquia e disciplina, buscando, sem dúvida, expurgar do seio da comunidade o que há de pior: os criminosos".
Flávio diria que essa gente compõe A "sociedade de bem".
CONGRESSO E MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
O domínio de pedaços do território brasileiro por grupos armados é uma questão federal. E há uma decisão do Supremo sobre as incursões policiais. Por óbvio, a investigação do massacre deveria ficar a cargo do Ministério Público Federal, com o concurso da Polícia Federal.
Sim, estou a defender a federalização da investigação. Apesar dos pesares, as chances de se chegar a algum lugar que preste aumentam. O MP do Rio não viu, por exemplo, crime do Morro do Falett. É pouco provável que veja no Jacarezinho.
Deputados do PSOL e do PT apresentaram um requerimento na Câmara para a criação de uma comissão externa que acompanhe as investigações. Que a OAB também se mobilize para valer. E façam o mesmo as entidades de defesa dos direitos humanos.
Não se pode permitir que o massacre do Jacarezinho seja uma espécie de ensaio.
Por Reinaldo Azevedo
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