A CPI está diante de um impasse. E também o Poder Judiciário — no caso, o STF. Precisamos decidir qual é o alcance e o que quer dizer a concessão de uma liminar que garante ao depoente em uma CPI, quando fala na condição de testemunha, o direito de ficar calado — vale dizer: de não produzir provas contra si mesmo; de não ser levado à autoincriminação.
E deixo claro: eu concordo com a concessão dessas liminares. Mas elas garantem o direito ao silêncio, não o suposto direito de mentir.
O bolsonarismo é tosco, burro, obscurantista, primitivo, cretino. Enfileirem aí quantas desqualificações vocês julgarem pertinentes, abusando do abecedário. E, muito provavelmente, estarão certos. Mas, a exemplo de todos os sacripantas — palavra substituível por "velhacos", "patifes", "indignos" —, alguns que falam à comissão sabem se safar.
E os safados são treinados na arte do escape. Conseguem se esgueirar — uma condição que lhes é natural, intrínseca — entre as dificuldades que lhes são criadas pelas pessoas decentes, que têm apreço pela verdade.
"Não estou entendendo, Reinaldo. Aonde você quer chegar?"
Vocês repararam que tanto Eduardo Pazuello como Mayra Pinheiro, que chegaram à CPI escoltados por uma liminar que lhes garantia o direito ao silêncio nas questões que podem levar à autoincriminação, optaram por falar? Não se ouviu nem do ex-ministro nem da "secretária-sei-lá-do-quê" a fala: "Eu prefiro não responder". Nada disso! Como pessoas destemidas, resolveram enfrentar os questionamentos.
Mas aí abusaram da mentira. Então estamos diante de um problema: se alguém recorre ao Supremo para não ser levado à autocriminação, estamos, sim, no terreno das garantias democráticas. O Estado — e a CPI é expressão de um dos Poderes do Estado: o Legislativo — não pode impor que a pessoa produza provas contra si mesma.
Quando se escolhe, diante de uma comissão de inquérito, o caminho do silêncio, vê-se uma manifestação de respeito à instância que tem delegação popular para a investigação. Se, no entanto, com a garantia debaixo do braço, o depoente, na condição de testemunha, decide mentir, então se assiste a uma afronta.
Pazuello e Mayra fizeram pouco caso da comissão e da investigação. Se isso persiste, resta à CPI apenas a desmoralização.
TRATECOV
As mentiras de Pazuello já foram esmiuçadas. Mayra seguiu a trilha. Com a cara mais limpa do mundo, afirmou, por exemplo, que o tal aplicativo TrateCov, uma picaretagem criminosa, não foi ao ar. Mentiu. Sim, o troço foi colocado à disposição da população.
Como lembrou o próprio senador Omar Aziz, presidente da CPI, no depoimento de Pazuello, houve uma reportagem da TV Brasil a respeito, com o testemunho de um médico do Amazonas. Aliás, esse senhor tem de ser encontrado. Ele tem CRM? É conhecido por alguém no Estado? É mentira que o acesso das pessoas ao tal aplicativo tenha se devido a uma cópia feita por um jornalista.
Eis aí: essa é uma das questões sobre a qual a tal Mayra poderia ter se calado. E teria sido uma atitude de respeito à comissão. Mas ela escolheu mentir para os senadores na certeza de que nada vai lhe acontecer. O bolsonarismo desmoraliza o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, as Forças Armadas, as instituições como um todo... Por que não buscaria desmoralizar uma comissão de inquérito?
OMS
Mayra também mentiu ao afirmar que a OMS mudou de ideia sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no combate à covid-19. Essa orientação nunca existiu. Ao contrário. No começo da pandemia, o máximo que se disse e que poderia ser, de algum modo, do agrado dos cloroquinistas é que não havia estudos que indicassem a eficácia dessas drogas. Depois, multiplicaram-se os estudos evidenciando a sua ineficácia e, pior, os graves efeitos colaterais advindos do uso impróprio. Em março deste ano, veio a recomendação explícita: contra o uso da cloroquina.
Acontece que Mayra não tinha um compromisso com os fatos. Estava na CPI, com um documento que lhe garantia o direito de silenciar, para proteger Jair Bolsonaro e, parece, fazer pouco caso dos senadores.
Otto Alencar (PSD-BA) a esmagou como se esmagaria um verme anticientífico. Depois de deixar claro que a cloroquina e hidroxicloroquina não são antivirais, indagou à doutora se existem remédios preventivos contra sarampo, paralisia infantil ou varíola que não sejam as vacinas. São doenças virais. E ela teve de concordar: não existem! Então por que as tais drogas combateriam o coronavírus? Ela escondeu o seu silêncio atrás da máscara.
LOCKDOWN
Mayra repetiu a mentira contada por Pazuello. Afirmou que a OMS, que chegou a recomendar o lockdown, hoje admite que ele pode ser responsável pela miséria. É uma estupidez. Isso não aconteceu. Como é sabido, a organização reconhece a eficácia da medida, mas adverte para a necessidade de atender aos vulneráveis.
Mayra não é nenhuma tola. É pediatra, com especialização em medicina do trabalho. Já foi sindicalista. Presidiu o Sindicato dos Médicos do Ceará. Opôs-se ferrenhamente à presença dos médicos cubanos no Brasil porque, dizia, não se podia atestar a qualidade de sua formação profissional. Chegou a se candidatar a senadora pelo Ceará. Ficou em quarto lugar. Uma das críticas da doutora ao "Mais Médicos" era esta: " [O programa] também trouxe a abertura indiscriminada de escolas de medicina no Brasil, de que não precisamos e que são de péssima qualidade."
Eis a qualidade da "Capitã Cloroquina".
CONCLUO
A CPI tem de tomar uma decisão. E aqui convoco a opinião de juristas. Se uma testemunha, especialmente quando escoltada por uma liminar que lhe garante o direito de ficar em silêncio, opta por enganar os senadores, bem, aí não vejo alternativa que não seja mesmo a voz de prisão.
Assim deve ser com Pazuello, com Mayra ou com qualquer outro que resolva escolher o caminho da trapaça.
Por Reinaldo Azevedo
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