terça-feira, 18 de maio de 2021

Desespero pré-eleitoral: Bolsonaro ressuscita QAnon caipira. Para tarados?



Durante um tempo, alguns esperançosos — ou, sei lá, incautos — alimentaram a fantasia de que Jair Bolsonaro pudesse moderar um pouco seu discurso para tentar conquistar setores de opinião mais ao centro. Não, a estratégia, definitivamente, não é essa. Ele avalia que os vinte e tantos por cento que tem agora, talvez com margem para cair um pouco, serão suficientes para levá-lo ao segundo turno. E aí aposta, então, na luta do "Anjo Guerreiro contra o Dragão da Maldade". O anjo, claro!, seria ele — quem sabe auxiliado, lá do outro mundo, pela alma do miliciano Adriano da Nóbrega. E o mal seria encarnado por Lula.

Sabe-se lá se será mesmo essa a configuração. É cedo para dizer. Até agora, não existe uma terceira opção consolidada. Uma coisa é certa: o presidente não permitirá a diáspora de seus ultrarreacionários. Faz questão de mantê-los e de dizer disparates ainda maiores do que os proferidos na campanha de 2018. Com eles, mais um tanto que conta reconquistas com a recuperação da economia, avalia que seu lugar está garantido no segundo turno.

QANON CAIPIRA
Uma das fantasias reacionárias que o bolsonarismo vai alimentar já andou dando as caras por aqui. Apareceram outras urgências no meio do caminho -- a campanha em favor (!) do coronavírus, por exemplo --, e o troço ficou meio de lado. Mas está de volta. Vamos ver.

Numa solenidade de lançamento da campanha do governo federal de conscientização contra a pedofilia -- Maio Laranja --, promovida pelo Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, o presidente afirmou a seguinte penca de barbaridades:
"Eu não vou citar nomes para evitar problemas... Mas vejam quem antecedeu a Damares [Alves] nos últimos anos. Pessoas conhecidas de vocês. Esse ministério, no passado, servia a quê e a quem? Não serviu à população e nem servia à questão dos direitos humanos. Era um ministério voltado para uma doutrinação e defesa das piores práticas praticadas (sic) pela esquerda no Brasil e no mundo (...). Esse ministério do passado, quando se falava em pedofilia, tinha um site, chamado "Humaniza Redes". O que dizia esse site no tocante à pedofilia? Mas era claro, era explícito. Dizia o seguinte: "Caso você encontre um adulto abusando sexualmente de uma pessoa, de uma criança, não interessa a idade... Dois, três, quatros anos, ou dois meses de idade, essa pessoa deve ser levada a um hospital para ser submetido (sic) a um laudo. Caso ela sofresse de transtorno, esse adulto deveria ser levado para um hospital e não para cadeia. Ou seja, era proteção à pedofilia, era um estímulo à pedofilia. Até porque tinha gente, na época, do próprio governo envolvido (sic) em pedofilia. É só fazer um breve exercício. O passado tá aí. Temos hoje a Internet (...)".

A maioria já deve ter ouvido falar do "QAnon", movimento de extrema direita surgido nos EUA que sustenta haver um grande complô de pedófilos, satanistas, comunistas e globalistas para dominar o mundo. Envolveria estrelas de Hollywood, políticos democratas e até alguns bilionários não afinados com o Partido Republicano... Seu grande ídolo era e é Donald Trump, único que seria capaz de enfrentar essa conspiração secreta.

É crescente a perda de apoio de Jair Bolsonaro. A recente pesquisa Datafolha deixou seus auxiliares assustados. Se a eleição fosse hoje, o ex-presidente Lula obteria 41% das intenções de voto no primeiro turno, contra apenas 23% do atual mandatário. No segundo, Lula bateria o dito "Mito" por 55% a 32%. Acham o atual governo ruim ou péssimo 45% dos entrevistados, contra 24% que dizem ser bom ou ótimo. Nada menos de 50% afirmam nunca confiar no que fala o presidente. Confiam sempre apenas 14% — que deve ser o tamanho do que se convencionou chamar nas redes sociais de "gado bolsonarista". Parafraseando a música de João da Praia, "aonde esse boi vai, os outros vão atrás".

INVENTANDO UMA CRUZADA
Releiam, se for o caso, trecho da fala insana. Nunca houve proteção oficial à pedofilia no Brasil, é evidente. Trata-se de uma mentira asquerosa. Assim como é mentirosa a afirmação de que tenha havido pessoas de governos anteriores envolvidas com práticas pedófilas.

Observem que Bolsonaro se comporta como um daqueles irresponsáveis que integram suas milícias digitais. Num país com um pouquinho só de seriedade, a Procuradoria Geral da República instaria o presidente a dizer, então, quais os respectivos nomes dos criminosos.

O Humaniza Redes tinha o objetivo justamente de recolher denúncias sobre agressões a direitos humanos nas redes, que eram encaminhadas aos órgãos competentes, já que não tinha função executiva nenhuma. Notem que Bolsonaro afirma saber de algo, mas estar impedido de dizê-lo "para evitar problema". Como é presidente da República e sustenta que havia em governos passados pessoas ligadas à pedofilia, muita gente acaba caindo na sua conversa.

Diz então: "É só fazer um breve exercício". Bem, o único exercício que seus seguidores farão será repetir por aí as suas sandices. Eu fiz o exercício e garanto: o senhor presidente está contando uma mentira. Ou então aponte o material que estimulava a pedofilia e cite os respectivos nomes dos pedófilos.

Bolsonaro está antecipando uma cruzada, a mesma que mobilizou fanáticos nos EUA. Alguns dos invasores do Capitólio eram militantes dessa loucura chamada "QAnon". Trump também estava encurralado por seu comportamento irresponsável durante a pandemia. Viu muito claro o risco de ser derrotado. E caiu no colo dos fanáticos e aloprados.

E não foi a única barbaridade do dia pronunciada pelo presidente brasileiro, como se viu.

"QAnon caipira" a esta altura? É impressionante! Por que algumas pessoas imaginam que pedófilos seriam de tal sorte organizados e estruturados — além de numerosos — a ponto de se juntar a satanistas e globalistas para tomar o poder? Ora, são esses conspiracionistas, então, a ver na pedofilia uma força formidável, que as mobiliza e, na verdade, fascina. Logo, adivinhem onde estão escondidos os verdadeiros tarados — inclusive morais.

Em certo sentido, estamos mesmo numa luta agônica: as conquistas da civilização democrática, pouco importa o nome de quem as represente, estarão em luta contra o obscurantismo, a morte e o desastre civilizatório.

Será preciso, sim, escolher um lado. Ou o país sai das trevas ou fica condenado ao atraso perpétuo.

PS: Ah, sim: Bolsonaro disse já ter visto vídeos com abuso contra crianças. Em que circunstância? Quais vídeos? Quem lhe passou? Foi deputado por 27 anos seguidos e se tornou presidente. Quais as evidências das providências que tomou?

Por Reinaldo Azevedo

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