A Lei 12.850 — dita das organizações criminosas, mas, na verdade, é a das delações premiadas — escancara a porta para todo tipo de abuso e torna o país refém ou de chantageados, capturados por procuradores ou forças-tarefas, ou de vagabundos dispostos a fingir que estão em busca da redenção.
Comece-se pela maior de todas as aberrações, que está no caput com Inciso I do Artigo 3º, que reproduzo:
"Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:
I - colaboração premiada".
Como? Em qualquer fase da persecução penal se pode fazer delação? Tome-se o exemplo de Sérgio Cabral. Quando rondava ali pelos 300 anos de cana, resolveu que era hora de tentar uma delação. Afinal, insisto, já tinha consciência de tudo o que sabiam e que não sabiam contra ele.
Aí, então, poderia realmente fazer uma delação segura para si mesmo e transformar em alvo quem lhe desse na telha. E o mesmo vale para outros delatores. Notem: nesse caso, não são o Ministério Público e a Justiça a ter o controle do delator, mas é o delator quem manipula um e outro.
É evidente que isso tem de mudar. E a regra há de ser a mais objetiva possível: diante da evidência do malfeito, colhida pelo MP, PF ou ambos, ofereça-se à pessoa em questão a delação. Se aceita, o pressuposto é contar tudo, sem que cesse a investigação. Se algo for descoberto no curso da apuração e se omitido pelo delator, não tem mais acordo.
Do modo como estão as coisas, o país fica entregue ao desespero de pessoas eventualmente chantageadas, que dirão o que querem que digam para se livrar, ou à má-fé de pilantras, que podem usar um benefício para fazer ajuste de contas com adversários políticos, ainda a serviço de interesses que conservam fora da cadeia.
Mais: identificado, então, o chefe de uma organização criminosa — e resta evidente que, no esquema de Cabral, ninguém estava acima dele —, é claro que ele não poderia contar com os benefícios de uma delação. Não faz sentido uma lei de delações que permita que os chefões, para se livrar, denunciem peixes menores. Pode-se até negociar algum benefício se ajudam a elucidar o crime, mas que seja mínimo.
A delação de Cabral era tão picareta que até a Lava Jato do Rio recusou, mas a Polícia Federal aceitou. E estou convencido faz tempo de que foi um erro o STF permitir que a PF se meta nesse assunto. Assim como é uma aberração o Ministério Público ter poder de polícia. Há macacos demais em galhos que não são os seus.
Outra delação premiada que é uma soma de despropósitos é a de Antonio Palocci, também recusada pelo Ministério Público Federal, mas aceita pela Polícia Federal. Isso não impediu, claro, que, depois, a Lava Jato procurasse usar as acusações irresponsáveis e sem fundamento do ex-ministro na administração de seus próprios interesses.
Já disse que não tenho simpatia nenhuma pela delação premiada justamente pelo poder que confere aos delatores e pelas múltiplas possibilidades de manipulação da investigação a que a sociedade acaba sujeita.
Tome-se agora esse caso da acusação de Cabral contra Dias Toffoli. Só vai servir para esquentar o festival de estupidez e baixaria nas redes sociais. Degradam-se as instituições sempre um pouco mais. E, em circunstâncias assim, é evidente que os autoritários veem fortalecido o seu discurso.
O Congresso que aí está deveria ter a coragem de enfrentar questões que bagunçam o devido processo legal e marcam um compromisso com a instabilidade permanente. Para tanto:
1: é preciso mudar a lei das delações, acabando com a possibilidade de o delator ser o senhor do processo;
2: é preciso tirar do Ministério Público o poder que nunca a Constituição lhe concedeu: o de investigar. Isso é tarefa da Polícia;
3: é preciso tirar da Polícia Federal o poder que nunca a lei lhe deu: o de celebrar acordos de delação. Isso é tarefa do Ministério Público.
Seriam os primeiros passos para botar um pouco de ordem na bagunça, que está corroendo as instituições. Até porque abre caminho para pistoleiros.
Por Reinaldo Azevedo
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