O envolvimento dos Bolsonaro em manifestações golpistas em plena pandemia mostra que o clã presidencial está acuado
Mais uma vez, o presidente Jair Bolsonaro associou-se a manifestações de caráter claramente golpista. O mote dos protestos, realizados no sábado em diversas capitais, foi resumido na palavra de ordem “Eu autorizo” – referência a uma recente declaração de Bolsonaro segundo a qual ele estava apenas esperando um “sinal” do “povo” para “tomar providências”, pois “o Brasil está no limite”. Os manifestantes, portanto, deram sua “autorização” para Bolsonaro agir.
É ocioso especular sobre a representatividade das manifestações a partir de seu tamanho – que, ademais, não foi mensurado. Mas pode-se afirmar que, ao contrário de demonstrar força, os protestos revelaram a fraqueza crescente do governo.
As manifestações antecederam a semana em que estão previstos os depoimentos de todos os ex-ministros da Saúde do governo Bolsonaro e do atual, Marcelo Queiroga, na CPI da Pandemia. Ou seja, foram programadas com o claro objetivo de intimidar os senadores que vão começar a levantar questões potencialmente embaraçosas para o governo.
Sem articulação política decente no Senado, o governo vem sofrendo sucessivas derrotas. Foi incapaz de impedir que a CPI ganhasse assinaturas suficientes para sua instalação, não conseguiu influenciar a indicação dos integrantes da comissão e ainda fez o papelão de tentar impedir na Justiça, sem sucesso, a indicação do desafeto Renan Calheiros para a relatoria.
A Bolsonaro restou, portanto, contar com a truculência de suas falanges para transformar a política em briga de rua. É o recurso de quem perdeu quase toda a sua já escassa capacidade de interlocução nas instituições democráticas, reduzindo de forma drástica seu poder de influenciar o debate nacional. Cada vez menos brasileiros levam o presidente a sério.
É por isso que Bolsonaro tornou a ameaçar com “providências” caso o “povo” lhe desse uma “sinalização”. Como costuma acontecer, o presidente não disse com todas as letras quais seriam essas “providências”, mas, nas outras oportunidades em que fez as mesmas ameaças, mencionou sua condição de “chefe supremo das Forças Armadas” e chegou a falar do Exército como se fosse sua guarda pretoriana.
Ou seja, Bolsonaro deixa no ar a possibilidade de articular um golpe – tal como defenderam explicitamente seus simpatizantes nas manifestações de sábado – com o argumento de que as instituições democráticas não o deixam governar, situação que, segundo a versão bolsonarista, levou o País à beira do caos.
No momento, o único caos está no Palácio do Planalto. O resto do País enfrenta com bravura e serenidade a enorme crise que o bolsonarismo agravou. A despeito da fome, do desemprego, da escassez de vacinas e da falta de perspectivas, não se vê entre os brasileiros o nível de inquietação que Bolsonaro aponta. Na verdade, o presidente parece ávido por um pretexto para exercitar sua vocação autoritária.
É aí que entram os manifestantes que foram às ruas para “autorizar” Bolsonaro a tomar “providências”. Esses seriam o “povo” de que fala o presidente, razão pela qual Bolsonaro os prestigiou sobrevoando um dos protestos a bordo de um helicóptero da Força Aérea. Não lhe pareceu imprudente vincular-se a um ato que chamou o Supremo Tribunal Federal de “organização criminosa”, entre outras barbaridades.
Um dos filhos do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, foi mais longe e, com a máscara no queixo, discursou num carro de som. Outro filho, o senador Flávio Bolsonaro, que criticou a instalação da CPI da Pandemia sob o argumento de que promoveria aglomeração e colocaria a vida dos senadores em risco, elogiou em suas redes as “ruas lotadas em todo o Brasil” – ocupadas por gente aglomerada e sem máscara.
O envolvimento dos Bolsonaros em irresponsáveis manifestações golpistas em plena pandemia mostra que o clã presidencial, acuado, está decidido a dobrar a aposta tanto no desafio à democracia como no menosprezo pela vida de seus compatriotas. Cabe à CPI, bem como às instituições de Estado, impedir, serenamente, que esse repto prospere.
Editorial do Estadão
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