sábado, 19 de outubro de 2019

Ministro ensina vergonha na cara e civilidade ao “Escola Sem Partido”



O ministro Gilmar Mendes, do Supremo, concedeu uma liminar (íntegra aqui) suspendendo os efeitos dos artigos 2º, caput, e 3º, caput, da Lei 3.491, de 28 de agosto de 2015, do Município de Ipatinga. Atendeu a pedido da Procuradoria Geral da República, que recorreu ao Supremo com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. E o que define a lei impugnada? Dá vergonha até de transcrever. Lá vai: 
"[as escolas não podem] adotar, nem mesmo sob a forma de diretrizes, nenhuma estratégia ou ações educativas de promoção à diversidade de gênero, bem como não poderá implementar ou desenvolver nenhum ensino ou abordagem referente à ideologia de gênero e orientação sexual, sendo vedada a inserção de qualquer temática da diversidade de gênero nas práticas pedagógicas e no cotidiano das escolas."

Trata-se de uma das patuscadas fascistoides do tal movimento "Escola Sem Partido". 

Num despacho de 22 páginas, Mendes dá uma verdadeira aula sobre democracia, tolerância e respeito à diversidade. Escreve: 
"deve-se vislumbrar a igualdade não apenas em sua dimensão negativa, de proibição da discriminação, mas também sob uma perspectiva positiva, de modo a promover a inclusão de grupos estigmatizados e marginalizados".

OFENSA À ORDEM LEGAL 
A lei do município de Ipatinga ofende: 
A – a Artigo 22, Inciso XXIV, em combinação com o Artigo 24, Parágrafo 1º, da Constituição, que estabelece ser de competência privativa da União a edição de normas sobre diretrizes e bases da educação nacional. Estados e municípios podem cuidar de legislação específica, desde que não agrida a norma constitucional;

B – a Lei Federal 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que define no Artigo 3º: 
O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: 
(…) 
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; 
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; 
IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância;

C – Artigo 206 da Constituição: O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: […] 
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; 

O ministro cita ainda robusta jurisprudência da própria corte que impede que se imponham restrições dessa natureza à educação. 

Mendes lembra tratados, convenções e diplomas internacionais, de que o Brasil é signatário, que vedam a discriminação, além, como é evidente, da Constituição:

A: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS 
Artigo I: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade; 
Artigo II: Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição;

B: CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS 
Artigo 1: Obrigação de respeitar os direitos. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social;

C: PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS 
Artigo 26: Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação;

D: PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA 
Princípio1 – DIREITO AO GOZO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Os seres humanos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero têm o direito de Desfrutar plenamente de todos os direitos humanos. […];

Princípio 2 – DIREITO À IGUALDADE E À NÃO DISCRIMINAÇÃO: Todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos humanos livres de discriminação por sua orientação sexual ou identidade de gênero. Todos e todas têm direito à igualdade perante à lei e à proteção da lei sem qualquer discriminação, seja ou não também afetado o gozo de outro direito humano. A lei deve proibir qualquer dessas discriminações e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer uma dessas discriminações;

E – CONSTITUIÇÃO FEDERAL 
Artigo 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)

DECISÃO EXEMPLAR 

Trata-se de uma decisão exemplar. Chegou a hora de pôr fim a delírios fascistoides dessa natureza. Agridem o fundamento civilizatório que alicerça a democracia brasileira. E que precisa, cada vez mais, ser vivenciado na prática.

O ministro lembra os vários ataques de que a comunidade LGBT tem sido alvo. Escreve: 
"Destaque-se que diversos casos e exemplos de ataques sistematizados de violência contra as minorias integrantes da comunidade LGBTI foram trazidos durante o julgamento da ADO 26, no qual a Corte deste STF decidiu pela criminalização da homofobia no tipo penal de racismo, até a promulgação de legislação adequada pelo Congresso Nacional.

Nesse precedente, assentei que os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Utilizando-se da expressão de Canaris, pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote).

Anote-se que a proteção adequada ou os imperativos de tutela do direito fundamental à igualdade e à não discriminação não devem se basear apenas na tutela penal, tradicionalmente compreendida como ultima ratio e incidente apenas após a lesão ou grave perigo de lesão a bens jurídicos fundamentais. 

Ou seja, o dever estatal de promoção de políticas públicas de igualdade e não discriminação impõe a adoção de um amplo conjunto de medidas, inclusive educativas, orientativas e preventivas, como a discussão e conscientização sobre as diferentes concepções de gênero e sexualidade."

ENCERRANDO 

Os que defendem a ordem democrática, a igualdade e a diversidade devem ter sempre à mão este despacho do ministro Gilmar Mendes. É um repto da civilização contra a estupidez.

Por Reinaldo Azevedo

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