quinta-feira, 15 de outubro de 2020

O que fazer para que respectivos atos de Marco Aurélio e Fux não se repitam



Já há uma maioria de seis votos em favor da decisão de Luiz Fux, presidente do Supremo, que cassou o habeas corpus concedido pelo ministro Marco Aurélio que libertou o megatraficante André do Rap, também um dos chefões do PCC. Tudo caminha para um nove a um no que concerne ao mérito. A questão agora diz respeito aos meios. Há bem mais em debate do que o "solta" ou "não solta" o traficante.

Cinco outros ministros já endossaram a cassação da decisão do voto de Marco Aurélio: Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber e Dias Toffoli. É muito provável que, nesse particular, façam o mesmo Carmen Lúcia, Ricardo Lewadowski e Gilmar Mendes.

Nesse caso, como acontece sempre, os meios vão qualificar o fim a que se chega. Que fique claro: o tribunal não está votando se concede ou não habeas corpus a André do Rap. O que se vota é o endosso ou não a uma decisão ilegal do presidente da Corte, que, por seu turno, cassa um ato escandalosamente danoso à sociedade. Entenderam?

Um consenso certamente une os 10 ministros, a começar de Marco Aurélio. Como aqui se destacou tantas vezes, o presidente do tribunal apelou a um instrumento impróprio para cassar a decisão de um de seus pares. Para lembrar: Fux apelou ao Artigo 4º da Lei 8.437, cujo conteúdo é necessário reproduzir aqui:
"Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas."

Como resta evidente, a lei 8.437 não é um instrumento adequado para o presidente da corte cassar a decisão de um colega porque, obviamente, não se trata de uma "ação movida contra o poder público e seus agentes". Se Fux tivesse se ancorado numa receita de Palmirinha, a fundamentação legal teria a mesma profundidade.

Não por acaso, o próprio presidente da Corte admitiu se tratar de "medida excepcionalíssima". O superlativo sintético não muda a natureza do instrumento. Até porque não se trata de uma excepcionalidade, mas de uma impropriedade. Medida dessa natureza tem de ser única, não excepcional. Nunca mais há de ser empregada porque, se pairar sobre a corte a possibilidade de seu presidente revogar eventuais extravagâncias com atos ilegais, então se abrem as portas para o imponderável. Ou para o vale-tudo.

Os 10 ministros que hoje habitam a corte certamente se consideram pessoas razoáveis, dotadas de bom senso, equilíbrio e patriotismo. Nenhum desses atributos, nem o conjunto deles, dá a cada um o direito de agir de forma arbitrária, ainda que para produzir o bem. São poucos os tiranos que não alimentam a mais genuína convicção de que são pessoas angelicais, vocacionadas para o certo. Democracia tem a ver com as regras do jogo.

Alexandre de Moraes destacou a impropriedade do instrumento a que apelou Fux. Não me pareceu claro, no entanto — os votos não foram publicados —, que tenha decidido jogar essa chave fora. Vamos ver como evolui o debate. Em seu voto, Rosa Weber foi bastante eloquente e clara: em matéria penal, apenas a turma ou o pleno podem cassar decisão liminar. Atenta, no entanto, ao dano provocado pela decisão de Marco Aurélio, endossou a decisão de Fux evocando a Súmula 691, que foi ignorada por Marco Aurélio.

O que ela diz mesmo? Lembro:
"Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar."

E Marco Aurélio concedeu liminar contra decisão tomada por ministro do STJ que já havia indeferido habeas corpus a André do Rap.

Apurado o resultado, cabe ao tribunal definir a impossibilidade de se empregar uma segunda vez o instrumento a que apelou Fux. Ou, então, se ponha fim de vez à possibilidade, em casos futuros, de ministros concederem liminares, e futuras decisões, quaisquer que sejam, só serão tomadas pela maioria do pleno ou da turma. Cumpre lembrar que isso corresponderia a negar a natureza do habeas corpus, definido pela urgência, pela iminência de um dano.

Obviamente não há nada de essencialmente errado com o Parágrafo Único do Artigo 316 do Código de Processo Penal, que impõe a revisão a cada 90 dias da decretação de prisão preventiva. Os quase 260 mil presos provisórios do Brasil que o digam. Mas é preciso estabelecer uma disciplina. Entendo que o tribunal pode fazê-lo. Moraes sugeriu:
- que se considere que, vencido o prazo de 90 dias, não se tem a revogação automática da prisão preventiva;
- que o Parágrafo Único do Artigo 316 não se aplica para sentença condenatória de segunda instância.

Entendo que esse julgamento não pode, pois, terminar sem que:
1: fique claro que o instrumento a que recorreu Fux não comporta reedição;
2: até que o Congresso Nacional não o faça, é preciso, sim, estabelecer um entendimento para a aplicação do Parágrafo Único do Artigo 316. Parece-me, por exemplo, que suspender a prisão preventiva sem ao menos ouvir o juiz que a decretou é inaceitável.
3: que a Corte reconheça que a revisão periódica é um imperativo do devido processo legal. Prisão preventiva não pode valer por uma prisão que é perpétua a depender da vontade do juiz que a decretou.

Por Reinaldo Azevedo

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