quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Governo foi infectado pelo vírus da falta de nexo



Em matéria de tratamento da Covid-19, o governo brasileiro oscila entre o mundo da Lua e a realidade. Num dia, Jair Bolsonaro ataca o rival João Doria e a vacina chinesa testada pelo instituto Butantã, defendendo a liberdade do brasileiro de não se vacinar. No dia seguinte, o Ministério da Saúde confirma uma parceria com o governo de São Paulo para adquirir 46 milhões de doses da vacina coronaVac, para imunizar brasileiros que residem em outros Estados. Uma medida provisória abrirá crédito orçamentário de R$ 1,9 bilhão.

Num instante, o presidente que ofereceu cloroquina até para as emas dos jardins do Alvorada cobra a óbvia necessidade de comprovação científica da eficácia das vacinas. Horas depois, o mesmo Bolsonaro preside solenidade na qual Marcos Pontes, o ministro astronauta da Ciência e Tecnologia, diz coisas definitivas sobre a eficácia de um vermífugo no combate ao vírus sem definir cientificamente as coisas.

Em abril, Marcos Pontes já havia trombeteado a estonteante boa-nova. Disse que estava por vir um medicamento com potencial para anular 93,4% da pujança do coronavírus. Declarou que o resultado das pesquisas seria revelado em maio. Decorridos seis meses, o ministro ornamentou sua exposição na solenidade comandada por Bolsonaro com um gráfico de mentirinha, disponível na internet. Nem sinal do estudo científico. O ministro alega que aguarda a publicação dos resultados numa revista científica.

Se descesse da Lua para a realidade, o ministro talvez concluísse que o mais adequado é combinar o rigor científico com a lógica de uma galinha. Antes de cacarejar é preciso botar os ovos. No caso das vacinas, o presidente precisa respeitar a lei que ele mesmo sancionou em fevereiro, prevendo a "realização compulsória de vacinação" em caso de pandemia.

Primeiro porque não faz sentido investir dinheiro em vacinas e desestimular a imunização. Segundo porque a pregação é inútil. As pesquisas indicam que 9 em cada dez brasileiros desejam se vacinar. Cabe ao governo garantir que isso ocorra com segurança. Terceiro porque, num país em que o alistamento militar e o voto são obrigatórios, um presidente que ignora a lei que ele próprio assinou para defender a liberdade de infectar desrespeita a inteligência alheia. O país não merece um governo infectado pelo vírus da falta de nexo.

Por Josias de Souza

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