terça-feira, 20 de outubro de 2020

Ministério da Saúde convocou veterinários para atender pessoas com Covid, conta pesquisador


Alexander Biondo, da Universidade Federal do Paraná, está à frente do maior estudo já feito no país para investigar a Covid-19 em cães e gatos Foto: Divulgação

A pandemia do coronavírus expôs as desigualdades sociais no Brasil, afirma Alexander Biondo, professor titular de zoonoses do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Biondo está à frente do maior estudo já realizado no Brasil para investigar a Covid-19 em cães e gatos e seus desdobramentos para a saúde humana.

Mas o cientista também presta assistência em testagem com indígenas, presidiários e pessoas em situação de rua. Os veterinários foram tratar desses grupos porque a Covid-19 acentuou ainda mais a exclusão, frisa ele, que participou da testagem de moradores de rua em São Paulo e constatou que mais da metade já havia se contaminado.

O senhor é professor de veterinária e passou a atender pessoas. Por quê?

Porque elas não tinham quem as atendesse. São indígenas, mulheres presidiárias, pessoas em situação de rua. Esses grupos já eram excluídos, e a Covid-19 acentuou a exclusão. Nesta pandemia, temos muitos exemplos maravilhosos de dedicação de profissionais de saúde, incluindo pesquisadores. Mas há gente que deveria estar na linha de frente e se omitiu, se escondeu. Então, populações que já eram marginalizadas foram abandonadas porque não houve assistência para todos. O Ministério da Saúde convocou os médicos veterinários do Brasil. Tempo de guerra, fomos acionados e respondemos. Trabalho com fauna urbana. Mas na pandemia passei a atender seres humanos. Há conexão entre a saúde humana e a de animais. Mas não foi só isso.

E o que foi?

Faltou gente na linha de frente para atender. Sou cientista de animais e faço testes de coronavírus em pessoas. E faço isso porque faltam pesquisadores e profissionais de saúde. Muitos ficaram em casa. Mas pandemias são como guerras, e muita gente que deveria estar na linha de frente se refugiou em casa. Nós como sociedade nos acovardamos e nos encolhemos. Deixamos populações vulneráveis ainda mais frágeis.

Como começou o trabalho?

Em alguns casos, começamos a trabalhar com os animais deles e vimos que precisávamos testar também os donos. Em outros, fomos chamados já para testar as pessoas. Nós estamos interessados em investigar sobre a pandemia os efeitos da aglomeração involuntária, como nos presídios, da vulnerabilidade social e o efeito ilha, que acontece em áreas isoladas geograficamente, em que o impacto da transmissão de patógenos pode ser exacerbado.

Como foi o trabalho com moradores de rua?

Testamos 300 pessoas da Zona Leste de São Paulo em colaboração com a Universidade de São Paulo (USP). Metade, pessoas em situação de rua, e a outra, o pessoal que presta assistência direta a elas. O impressionante é que nenhuma era positiva, mas 52% tinha anticorpos que mostravam que haviam sido expostas ao vírus.

E o que isso significa?

Esse percentual, de 52% de positivos numa amostragem, é o mais alto do mundo. Mas testamos os sobreviventes. Essas pessoas foram severamente expostas ao coronavírus, mas como só testamos a partir de 25 de agosto, chegamos somente aos sobreviventes, porque o auge da pandemia foi em abril e maio. Não existe qualquer indicador de que sejam resistentes ao vírus. Morar na rua, exposto a todos os tipos de risco, não torna alguém imune, ao contrário. O número de óbitos de sem-teto em São Paulo não chega a 30, mas o número oficial não cobre a realidade de uma população flutuante e indocumentada. Moradores de rua dão entrada no IML como indigentes. Ninguém se preocupa com eles, são invisíveis.

E como é a testagem com presidiárias?

Testamos agentes penitenciárias e detentas da Penitenciária Feminina do Paraná. A meta é testar todas as detentas e as agentes carcerárias. Já testamos cerca de 50 agentes e 100 presas.

E com os indígenas?

Trabalhamos com aldeias guaranis entre Antonina e Guaraqueçaba e agora iniciamos um estudo na Ilha da Cotinga, em Paranaguá. Houve surtos de Covid-19 nas aldeias e fomos a campo para trabalhar com as pessoas e com os animais delas.

O que todos esses estudos revelam?

Que os testes de diagnóstico de Covid-19 devem ser orientados pelo risco de determinados grupo e não somente em sinais clínicos. Esses grupos já são socialmente vulneráveis e precisam de atenção prévia. É preciso focar na prevenção ou o resultado pode ser devastador. E no Brasil acontece justamente o contrário.

Como é a pesquisa com pets que coordena?

Vamos testar mil cães e gatos. A pesquisa começa agora e será realizada em Curitiba, Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Campo Grande, com financiamento do CNPq e do Ministério da Saúde. Conta, por exemplo, com a colaboração com a USP, o Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (Fiocruz/Recife), o laboratório Tecsa e as universidades de Londres e Washington, dentre outras instituições. Os animais serão selecionados de duas formas.

Quais?

A primeira é por procura espontânea, um estudo epidemiológico, para investigar a prevalência do coronavírus em cães e gatos de pessoas que tiveram Covid-19. Pedimos a pessoas com diagnóstico positivo que nos procurem pelo e-mail COVID19@ufpr.br. A segunda é por busca ativa de pessoas com diagnóstico positivo por PCR de coronavírus e que nos permitam testar também os seus animais. Os testes serão moleculares (PCR) e sorológicos (Elisa). O objetivo é ter um retrato mais completo do espalhamento da Covid-19 em animais.

Como é o cuidado com saúde animal no Brasil?

O Brasil tem muito o que avançar em organização porque o país não dispõe de um centro nacional de referência de diagnóstico veterinário, a exemplo dos EUA e de outros países. Existem centros estaduais, mas é preciso uma visão nacional para conter doenças. Isso é uma deficiência colossal num país que tem tantos pets quanto crianças pequenas em casa, segundo o censo de 2010 do IBGE. Não nos faltam exemplos da necessidade de um centro desses.

Poderia citar alguns?

Eles aconteciam bem antes da Covid-19. Tivemos antas com tuberculose humana no zoológico de Curitiba, contaminadas por uma cepa oriunda do Rio de Janeiro, há alguns anos. Também há quatis com tuberculose bovina. Tudo isso precisa ser monitorado num país com tantas pessoas e bichos.

Em O Globo

Nenhum comentário: