quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Anvisa vira palco da guerra política das vacinas



Ao declarar guerra à "vacina chinesa do Doria", Jair Bolsonaro transformou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária numa frente de batalha. "Quem está com o relógio das vacinas contra a Covid-19 na mão é a Anvisa", disse o governador Renato Casagrande, do Espírito Santo. "A pergunta que temos de responder é: a agência terá ou não independência para analisar as vacinas tecnicamente?"

A dúvida de Casagrande é compartilhada por outros 23 governadores que, como ele, participaram na terça-feira de reunião com o ministro Eduardo Pazuello (Saúde). Foram informados sobre a intenção do governo de incluir no programa nacional de vacinação 46 mil doses da vacina chinesa CoronaVac, testada no Brasil pelo Instituto Butantan, de São Paulo.

O Brasil precisará de mais de uma vacina para imunizar sua população. No momento, a Anvisa monitora os testes de quatro. Entre elas "a chinesa do Doria" —como Bolsonaro se referiu ao imunizante do laboratório chinês Sinovac Biotech. E a britânica da Universidade de Oxford, cuja testagem no Brasil é monitorada pela Fiocruz, fundação vinculada ao Ministério da Saúde.

Avalia-se que o processo de aferição da eficácia da vacina testada pelo Butantan será mais rápido. E os governadores receiam que, por pressões políticas, a Anvisa atrase o relógio da certificação da vacina refugada por Bolsonaro. Nesta quarta-feira, João Doria esteve com o presidente da Anvisa, o almirante Antonio Barra Torres.

O almirante disse a Doria que o seu compromisso é o de tratar tecnicamente o processo de certificação das vacinas. "Para nós não importa de onde vem a vacina", disse o próprio Barra Torres aos repórteres após reunir-se com o desafeto de Bolsonaro. Será?, perguntam os governadores aos seus botões.

Até para comprar diretamente do Butantan doses da CoronaVac os governadores precisariam da Anvisa. No limite, se Bolsonaro não der mão forte ao seu ministro da Saúde, o conflito com Doria pode estimular alguns estados a formar um consórcio ou negociar isoladamente com o Butantan.

Casagrande resume assim a síndrome do que está por vir: "Podemos comprar uma parte das vacinas, mas como posso realizar a compra, individualmente ou num consórcio de estados, sem saber se essas vacinas serão aprovadas pela Anvisa?" Ou ainda: "Se a Anvisa aprovar uma vacina, significa dizer que ela será eficaz. Se o governo federal não adquirir essa vacina, vai começar uma corrida dos estados para comprar a vacina. Não é possível que chegaremos a esse ponto."

Ironicamente, o almirante Antonio Barra Torres, que presidia a Anvisa interinamente desde dezembro de 2019, foi efetivado pelo Senado na presidência da agência apenas na última terça-feira, dia em que Pazuello se reuniu com os governadores. Prometeu realizar uma gestão independente. Faltou definir independente.

Há sete meses, em 15 de março, Bolsonaro deu de ombros para as recomendações de distanciamento social ao participar de um protesto defronte do Planalto. O almirante da Anvisa fez companhia ao capitão. A certa altura, Barra Torres atuou como cinegrafista, filmando Bolsonaro enquanto o presidente distribuía apertos de mão aos seus devotos. A sintonia entre o presidente da República e o personagem que agora promete agir de forma independente na Anvisa parecia intensa.

Por Josias de Souza

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