O presidente Jair Bolsonaro superou a sua própria capacidade de dizer asneiras sobre a Covid-19 e a vacina ao falar a seus apoiadores nesta segunda. Aliás, no tempo em que ele se manteve afastado dos desocupados, convenham, a tensão política baixou bastante. Mas, como se nota, é preciso alimentar os obscurantistas para que estes continuam a produzir... obscurantismo.
Cesse tudo o que a antiga musa canta. É raro que um dito popular coincida com o pensamento científico, não é mesmo? Com frequência, as pesquisas desautorizam as generalizações apressadas, seja nas ciências sociais, seja nas ciências da natureza. Mas, às vezes, acontece a coincidência feliz. Diz o povo com razão: é melhor prevenir do que remediar.
Arrumar um estrago é mais caro do que a trabalho preventivo para evitar que aconteça. E o mesmo vale em saúde pública. Não para Bolsonaro.
Com a cara de quem desconfia de alguma conspiração e induzindo seus fiéis alfabetizados, mas iletrados (alguns com curso universitário), a pensar o mesmo, o presidente fez uma suposta constatação e uma indagação, com aquela sua gramática que só não é mais bárbara do que seu pensamento:
"Todo mundo diz que a vacina que menos demorou até agora foram quatro anos. Eu não sei por que correm em cima dessa. Eu dou a minha opinião pessoal: não é mais barato e mais fácil investir na cura do que até na vacina? Ou jogar nas duas, mas também não esquecer a cura? Eu, por exemplo, sou um testemunho. Eu tomei a hidroxicloroquina. Outros tomaram Ivermectina. Outros tomaram Anitta. E deu certo. E, pelo que tudo indica, todo mundo que tratou precocemente com uma dessas três alternativas aí foi curado."
É mentira! O efeito dessas drogas no que ele chama de "cura" da Covid-19 é o mesmo do leite quente da vovó. Um amigo teve Covid-19 e aproveitou para ler "Os Irmãos Karamazov". Os remédios citados pelo presidente curam a doença tanto quanto Dostoiévski. Será essa conversa liberdade de expressão quando na boca de um presidente? Entendo tratar-se de crime.
Ao fazê-lo, induz a população a desconfiar da vacina, de qualquer uma, e a optar pela automedicação, alheio a eventuais consequências danosas de um falso tratamento. Observem que o presidente não livra da suspeição nem a vacina de Oxford, que conta com o apoio oficial do seu governo, também ela desenvolvida em tempo recorde.
Estou enganado, ou Bolsonaro quer levar uma parcela considerável dos brasileiros a acreditar que a vacina é um desperdício de recursos, que poderiam, então, ser mais bem aproveitados em outra área? É uma variante de sua opinião homicida de que o distanciamento social era desnecessário porque prejudicaria a economia.
QUESTÃO JUDICIAL
O presidente também decidiu peitar de saída o Supremo antes que este tome uma decisão sobre a obrigatoriedade da vacina ou de o governo oferecer a dita-cuja para todo mundo. Disse:
"Temos uma jornada pela frente, onde (sic) parece que foi judicializada essa 'cuestão'. E entendo que não é uma 'cuestão' de Justiça. É uma 'cuestão' de Saúde acima de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não existe".
Quem é o jurista que o instrui? André Mendonça, o terrivelmente sabujo? Quem lhe disse que uma 'cuestão' não pode ser, a um só tempo, "de Saúde e de Justiça"? Certamente o imbecil que o fez ignora os artigos 6º — cláusula pétrea da Constituição — e também o 196 e o 197. A saúde é um direito dos indivíduos e um dever do Estado.
Foi com base nessas disposições que o próprio Bolsonaro sancionou a Lei 13.979, que dá poder ao governante, inclusive aos governadores, para tornar a vacina obrigatória em sua esfera de competência. Talvez o Congresso deva voltar ao tema para impor sanções a quem se negar a tomar vacina sem ter uma justificativa médica. Que tal vetar o acesso a benefícios sociais e a linhas especiais de crédito? Ou instituir o carimbo em passaporte, de modo que o mundo saiba que, sendo brasileiro e não havendo a chancela, não está imunizado e pode carregar o patógeno?
"Autoritário"? Ah, não! Autoritário é reivindicar o direito de se contaminar e de sair por aí como uma bomba que asperge vírus, podendo vitimar pessoas às quais, por razões de saúde, a vacina não seja recomendada. O suicídio é um direito não escrito. Resistir a uma política pública para conter ou combater uma doença contagiosa é crime, segundo o Artigo 268 do Código Penal.
Os fanáticos de Bolsonaro o querem contra a vacina. Sua popularidade aumentou na pandemia. Isso não se deu em razão de suas opiniões sobre a Covid-19, mas do auxílio emergencial. Ocorre que, caso se encoste o ouvido ao peito de um bolsominion, lá bate um coração que rejeita a ajuda, ou porque considera que isso é "socialismo" ou porque acha que só é pobre quem é preguiçoso.
A vacina não deixa de ser uma aposta que o indivíduo faz no coletivo, expressão de um gesto de amor por si mesmo, mas também pelo outro. E esses caras só entendem o exercício da liberdade como expressão do ódio. Por isso, diga-se, chamam sua obsessão pelo politicamente incorreto de "liberdade de expressão", e o suposto direito de contaminar os outros de "liberdade".
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