Não convém chamar para o mesmo banquete os pobres e o governo Bolsonaro. Até agora, essas duas expressões da realidade não conseguiram estabelecer uma conexão. A confusão no INSS, que resultou na demissão do presidente do órgão — já chego lá — deriva dessa incompatibilidade essencial. Há explicações.
Bolsonaro fez sua carreira atacando todas as políticas de reparação. Engana-se quem acha que ele enrosca apenas com gays ou feministas. A minoria mais vistosa, a mais saliente, a que mais cobra uma resposta de quem prefere se acomodar no conforto das maiorias silenciosas, é mesmo formada pelos pobres.
A título de exemplo, lembro que o presidente, nesta terça-feira, ao resumir a orientação que deu a Regina Duarte para atuar à frente da Secretaria de Cultura, afirmou o seguinte: "Conversei com ela. Como tratar a questão da cultura no Brasil sem o viés de esquerda que tinha aí, só dava minoria". Entenderam? Na cabeça de Bolsonaro, ocupar-se de minorias ou dos mais vulneráveis é coisa da esquerda. Por contraste, a direita que ele representa prefere lidar com pessoas que não precisam de nada. No Brasil, costumam ser, de todo modo, as mais privilegiadas pelo Estado e as que pagam menos impostos. Mas isso fica para outra hora. Voltemos.
Dia desses o presidente também falava sobre a tragédia das enchentes. Lembrava que eram muitos milhares os desabrigados. E afirmou, com ar involuntariamente entediado, que o governo faria o possível, deixando no ar a sugestão de que não seria muita coisa. Nada de palavras de solidariedade, empatia, identificação, afeto...
Com Paulo Guedes, ministro da Economia, não é diferente. A rapidez com que ele aventou a hipótese de sobretaxar "os pecados" — cigarro, álcool e doces — impressionou. Com meia-dúzia de palavras, culpou parcela considerável dos doentes pela doença, enquanto ameaçava lhes enfiar a mão do bolso. Não fumem, não bebam e não comam pudim e não ficarão doentes nem vão onerar os serviços públicos de saúde.
Também ele tem uma visão dos necessitados que carrega, em essência, algo de hostil. Parecem existir para desafiar o equilíbrio das contas e para impedir orçamentos atraentes para investidores. Não estranha que, ao pensar o meio ambiente, acabe vendo uma espécie de bando de vorazes a devastar a natureza para comer.
A composição Bolsonaro-Guedes acaba sendo perigosa. Um comete o equívoco de achar que políticas inclusivas ou compensatórias são coisas de esquerdistas. E o outro é um liberal à moda antiga, meio démodé, que parece ver na assistência não mais do que uma das disfuncionalidade do mercado. Não tivesse havido a chance da mamata, em vez de estar buscando um benefício, o pobre teria dado um jeito de empreender.
Na soma dessas duas formas de alienação, temos uma fila de mais de dois milhões de pessoas à espera dos benefícios do INSS. Foi ela que derrubou Renato Vieira, presidente do órgão. Ocorre que o problema não vem de agora. Não é só a prestação do serviço que está atrasada. Os procedimentos também perderam qualidade, e cresce o número de ações judiciais.
Sim, eis aí aquela gente pobre que, visivelmente, incomoda esse governo e não consegue, vamos dizer, mobilizar em Guedes ou em Bolsonaro os humores da empatia. Tenta-se fazer alguma coisa, chamando servidores aposentados e militares da reserva, porque não fica bem aquela fila de velhinhos ao Deus-dará. Na melhor das hipóteses, prevê-se que haverá uma normalização no atendimento no prazo mínimo de um ano. Os novos atendentes estarão prontos para o serviço, estima-se, em três ou quatro meses. A pobreza não surgiu ontem. Pode esperar, certo?
O Bolsa Família também sumiu da vista de parcela considerável dos muito pobres. A fila à espera de benefícios já reúne 500 mil pessoas, depois de ter sido zerada em 2018. O governo diz estar em curso uma reformulação do programa. Não diz exatamente qual. O falto é que os R$ 32 bilhões gastos em 2019 se transformaram numa previsão de R$ 29 bilhões neste ano.
Fala-se aqui de um tipo de pobre distinto daquele que fica penando na fila do INSS. Os beneficiários do Bolsa Família são pessoas que vivem na extrema pobreza. Quaisquer que sejam as urgências para diminuir o déficit público, jamais se poderia tocar num programa como esse. Mas sabem como é...
É assim que Bolsonaro entende que se faz um governo sem viés de esquerda.
Por Reinaldo Azevedo
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